terça-feira, 13 de agosto de 2019

NESTA 5ª FEIRA O FESTIVAL DE WOODSTOCK COMEMORA 50 ANOS: NUNCA OS VENTOS DE MUDANÇA SOPRARAM COM TANTA FORÇA!

Episódio dos mais emblemáticos e alentadores do século passado, o Festival de Música e Artes de Woodstock hoje só é lembrado pelo grande público e a grande imprensa em efemérides como a desta 5ª feira (15), quando se comemora seu cinquentenário.

E mesmo em tais ocasiões, os enfoques da indústria cultural oscilam entre o nostálgico e o pitoresco, como inimiga que foi e é dos ideais que se corporificaram naquele magnífico evento.

Indo na contramão, como sempre, faço questão de manter sempre viva a lembrança de Woodstock e dos caminhos que ainda nos aponta, hoje e agora, para a construção de um mundo melhor.

Para começar, uma constatação óbvia: Woodstock foi uma moeda que caiu em pé.

Os deuses de todos os povos e de todos os tempos parecem ter-se mobilizado para que tudo desse certo durante três dias mágicos, maravilhosos, que seriam para sempre lembrados como uma amostra da perfeição possível neste sofrido planeta.

Sem favor nenhum, posso afirmar que Woodstock foi o evento musical que mais influenciou as artes e os costumes na história da humanidade. E a conjunção de fatores que o transformou em marco e lenda dificilmente se repetirá.

Não precisamos acreditar piamente na esnobada de Gilberto Gil: "Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou". Mas, tão somente, levar em conta o que houve de específico nesse festival. Outros sonhos virão, com certeza. A História não tem fim, queiram ou não os Fukuyamas agourentos.
Jimi Hendrix implodindo o hino nacional dos EUA
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"SOME FLOWERS IN YOUR HAIR"
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Para começar, o Festival de Woodstock foi o ponto de chegada e a culminância de vários fenômenos e acontecimentos marcantes.

A escalada estadunidense no Vietnã, ao longo da década de 60, engendrara um movimento pacifista de crescente influência entre os jovens dos EUA, com direito a manifestações de protesto, queimas de cartas de recrutamento, choques com a polícia e a uma manifestação-monstro de cerco ao Pentágono.

Em 1965, um estudante de química chamado Owsley Stanley aprendeu como fabricar ácido lisérgico no porão de sua casa e logo inundou San Francisco com o LSD, impulsionando o surgimento da geração das flores, imortalizada pela bela canção de Scott McKenzie: Se você estiver indo para San Francisco,/ não se esqueça de colocar/ algumas flores no seu cabelo...

Foi aí que o movimento hippie nasceu, aglutinando jovens que recusavam o american way of life e caíam na estrada, em busca de aventuras e novas experiências.

Em termos mais profundos, pode-se lembrar que era a fase em que a crescente mecanização da indústria mais e mais dispensava o uso da força física, demolindo algumas vigas-mestras da sociedade estadunidense, toda ela construída em cima do ascetismo puritano (a negação do prazer a fim de poupar energias para o trabalho). Na década de 60, o prazer reconquistava suas prerrogativas.
Grandes festivais de rock já haviam ocorrido em Monterey (1967) e na Ilha de Wight. Este último vinha se realizando desde 1968, embora o mais marcante e lembrado seja o de 1970, quando se deu uma das últimas apresentações de Jimi Hendrix.

Quanto a públicos expressivos, também não eram novidade: o festival inglês já reunira 250 mil pessoas.

Mas, foi no de Woodstock que a indústria cultural investiu pesado pela primeira vez. É que, com algum atraso, os mercadores das artes se deram conta de que tinham um diamante bruto ao alcance das mãos. Prepararam-se, então, para explorar em grande estilo o evento seguinte.

Por último, vale notar que ainda se vivia a época dos compactos, em que eram   singles  e não elepês que corriam o mundo, com a repercussão dependendo, principalmente, da divulgação nas rádios.

Pouco se conhecia da segunda onda do rock (a primeira, nos anos 50, fora a dos pioneiros Elvis Presley, Chuck Berry, Little Richard, Bill Haley, etc.).

Muitos garotos, como eu, amavam os Beatles e os Rolling Stones. De resto, haviam escutado. The House of Rising Sun (Animals), Sunny (Johnny Rivers), A Wither Shade of Pale (Procol Harum) e quase nada mais.

Existia uma produção musical de grande qualidade represada, não atingindo circuitos mais amplos. Seria a irrupção dessa nova geração de importantes artistas ainda relativamente desconhecidos que asseguraria a surpresa e o enorme impacto causados pelo filme Woodstock e pelo álbum triplo com registros desse evento.
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Joe Cocker na sua melhor performance em 50 anos de carreira
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BRINCANDO NA CHUVA
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Foram três dias de paz, música e amor, de 15 a 17 de agosto de 1969, levando 450 mil jovens até a fazenda do leiteiro Max Yasgur, a 80 quilômetros de Woodstock, estado de Nova York.

Logo no primeiro dia o festival foi declarado livre: quem não tinha comprado antecipadamente o ingresso, não precisou mais fazê-lo. Com isto, os promotores tiveram US$ 100 mil de prejuízo inicial, mas acabaram saindo no lucro: o filme lhes proporcionaria um retorno imediato de US$ 17 milhões.
O torrencial aguaceiro do segundo dia foi tirado de letra pela moçada, que aproveitou para relembrar a infância, chapinhando na lama. De início se tentou afastar a chuva com a força do pensamento positivo, todo mundo gritando No rain! No rain!.

Depois, o jeito foi se amoldar a ela, brincando de tobogã e cantando. No álbum Woodstock há dois registros disto: no disco I, o improvisado canto da chuva; e no II, a multidão entoando em coro o refrão deixa o sol brilhar!, da peça Hair.

As boas vibrações não impediram a ocorrência de três mortes: uma overdose, um atropelamento por trator e um ataque de apendicite. O guitarrista e líder do The Who, Peter Townshend, não se limitou, como de hábito, a destruir o instrumento de trabalho no final apocalíptico de sua performance; levou a fúria para os bastidores, quebrando o pau com o líder hippie Abbie Hoffman.

O evento foi processado para o cinema por Michael Wadleigh, que fez uma magnífica edição de imagens e introduziu uma novidade: a bi ou tripartição da tela, oferecendo ao espectador tomadas simultâneas do mesmo grupo, de artistas isoladamente, do público, etc.
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Richie Havens: visceral, arrebatador!
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Há, além disto, nítido empenho em situar o evento sociologicamente, ao contrário do documentário sobre o Festival de Monterey, que se ateve quase exclusivamente à música. Daí a merecida reputação de Woodstock como o filme que inovou a arte de registrar espetáculos musicais.
NEM TUDO FOI MOSTRADO
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Muitos artistas deixaram de ter um número exibido no filme e no álbum triplo. Ficaram de fora Melanie, Mountain e Butterfield Blues Band, com o consolo de aparecerem no segundo álbum Woodstock, duplo, que foi lançado algum tempo depois. O Jefferson Airplane não está no filme, mas sua Volunteers consta do álbum triplo e teve mais canções aproveitadas no álbum duplo.
A relação dos que lá estiveram mas ficaram de fora tanto do filme quanto dos álbuns é extensa: Janis Joplin, Grateful Dead, The Band, Blood Sweat & Tears, Creedence Clearwater Revival, Incredible String Band e Johnny Winter. Motivo: problemas contratuais.

[Neste século tudo isso foi sendo disponibilizado na web, sendo hoje facilmente encontrado em sites e blogues.]

Os cachês mais altos foram os de Jimi Hendrix (US$ 18 mil), Blood Sweat & Tears (US$ 15 mil), Joan Baez e Creedence Clearwater Revival (US$ 10 mil cada). Santana exibiu sua empolgante fusão de rock e sonoridades latinas, Soul Sacrifice, pela bagatela de 750 dólares.

O trovador John Sebastian tirou a sorte grande: não foi convidado, mas apareceu para dar uma olhada e acabou subindo ao palco quando a chuva recém-finda impedia a apresentação de bandas eletrificadas. Ganhou direito a constar do filme e do disco, além de receber mil dólares.

O Crosby, Stills, Nash & Young, que acabava de ser constituído, cativou a platéia com seu folk-rock contestador e obteve êxito instantâneo, lançando as bases da longa carreira de seus integrantes (pouco tempo como quarteto e muito mais como artistas-solo).

No extremo oposto, o Ten Years After foi a principal vítima da síndrome de Woodstock: nunca igualou os 11 esfuziantes minutos de Goin’ Home, que valeram para Alvin Lee a reputação de grande guitarrista.

Outra curiosidade: foi marcante a aparição de Arlo Guthrie (Comin’ Into Los Angeles), cuja trajetória acabaria sendo eclipsada pela de Bob Dylan. Os estilos vocais e temáticos eram semelhantes, tendo Dylan sido mais eficiente em afirmar-se como herdeiro da arte e da lenda de Woody Guthrie, o precursor dos mochileiros. Correndo na mesma faixa, ele sobrepujou o próprio filho de Woody!

A vertente negra do rock se destacou em duas performances memoráveis. Richie Havens, um talento que depois definharia, arrepiou a platéia com seu camisolão africano e a interpretação fulgurante de Freedom. E Jimi Hendrix, no auge de sua genialidade, puniu simbolicamente os militaristas com a implosão do hino nacional dos EUA.

Isto para não falar do herdeiro branco e britânico de Ray Charles, o chapadíssimo Joe Cocker, com sua voz poderosa e postura bizarra, sacudindo o corpo para a frente e para trás como um boneco de mola enquanto as mãos dedilhavam sem parar uma guitarra inexistente.

O rock erudito, que marcaria toda uma época, também se fez presente em Woodstock: o The Who interpretou uma compilação de faixas da ópera-rock Tommy, projetando mundialmente essa sua (para a época) extravagância: um álbum-duplo que, faixa a faixa, vai contando a história de um menino que flagra o adultério da mãe e o assassinato do pai, recebendo então a ordem de apagar aquele episódio da mente e nunca relatá-lo a ninguém. O trauma o torna cego, surdo e mudo, mas ele acaba se libertando e atingindo a iluminação.
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O rock latino de Carlos Santana: um arraso!
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SÍNTESE DA CONTRACULTURA
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Com Woodstock ganhou repercussão ampla o movimento de paz e amor  que fermentava na boêmia San Francisco desde meados daquela década, como um desdobramento lisérgico e roqueiro do antigo movimento beatnik.
Suas características externas são ressaltadas no filme:
  • o amor livre e a desinibição corporal, com o nudismo sendo amplamente praticado, de forma inocente e até singela;
  • a convivência harmoniosa, sem nenhum resquício de preconceito, entre indivíduos de todas as raças, credos e orientações sexuais;
  • o consumo explícito e justificado (por alguns entrevistados, como Jerry Garcia) das drogas que, no entender daquela geração, abriam as  portas da percepção;
  • o visual premeditadamente desarrumado do pessoal, com suas roupas coloridas, ponchos e cabeleiras imponentes;
  • a substituição dos laços familiares por uma comunidade grupal (ou, como se dizia então,  tribal);
  • a volta à natureza e a redescoberta do lúdico (em vários momentos, veem-se marmanjos entregues a brincadeiras pueris, sem nenhum constrangimento);
  • a profusão de crianças, pois os hippies mandavam às favas o planejamento familiar, os anticoncepcionais e os abortos, assumindo plenamente o amor e suas conseqüências;
  • o solene desprezo pelas regras e valores dominantes na sociedade, que se evidencia até nas falas dos organizadores do festival, não ligando a mínima para os prejuízos que estavam ameaçados de sofrer.
De certa forma, este comportamento era inspirado por teóricos como Reich, Marcuse e Norman O. Brown, que vincularam o autoritarismo político à repressão instintiva, alegando que a liberdade era cerceada não só pelos mecanismos sociais que mantinham a estrutura de classes (visão da esquerda convencional), como também pelos condicionamentos que embotavam a imaginação e inibiam o desfrute pleno da sexualidade.

Essas teses inspiraram uma nova voga anarquista, que pregava o combate ao stablishment também no íntimo de cada pessoa. As drogas serviriam para o resgate de faculdades esquecidas devido ao desuso; e a liberalidade sexual, incluindo as práticas antes estigmatizadas como perversões (homoerotismo, sodomia, sexo oral, masturbação), seria a premissa de uma visão erótica do mundo, em substituição ao princípio da realidade freudiano.
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Joan Baez: tributo ao mártir sindical Joe Hill.
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BRASIL: COMUNIDADES E BICHOS-GRILOS
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A influência de Woodstock em nosso país pode ser detectada na música (Raul Seixas, Made in Brazil, a última fase dos Mutantes), no teatro (Oficina, Tuca), na cinematografia (o chamado cinema marginal) e, sobretudo, nos costumes, com os bichos-grilos que percorriam as estradas como caronas, indo e vindo à meca de Arembepe (BA), além de criarem comunidades urbanas e rurais onde exercitavam um estilo alternativo de vida.

Essas tentativas, entretanto, esbarraram no ambiente repressivo dos  anos de chumbo, o que levou, p. ex., a ser expulso do Brasil o elenco do Living Theatre de Julian Back, que supôs encontrar aqui seu paraíso tropical. 
E, em termos mais amplos, na própria impossibilidade de contingentes mais amplos, num país pobre como o nosso, garantirem indefinidamente seu sustento com artesanato, aulas de ioga e que tais.

A grande vitória da  Geração Woodstock  foi ter conseguido arrancar os Estados Unidos do Vietnã. E seu exemplo repercute até hoje no ativismo em defesa do meio ambiente e a favor de algumas causas justas.

Além disto, ela entronizou a imagem do jovem como centro do universo do consumo, em substituição ao modelo rígido do pai de família, daí derivando a descontração no vestir, no falar e no comportamento.

E ainda lançou alguns modismos que hoje estão em menor evidência, como o ioga, a macrobiótica, o ocultismo e a agricultura natural (sem defensivos e fertilizantes).

Não perduraria, entretanto, aquela militância política idealista e generosa: as gerações seguintes se desinteressaram de mudar o mundo, voltando a priorizar a ascensão profissional e social. O rock, depois de uma fase intensamente criativa e experimental, voltou aos caminhos seguros do marketing.
Feira hippie no centro velho de São Paulo, anos 70.

As drogas, ao invés de abrirem as portas da percepção, se tornaram instrumentos para a fuga à realidade e a ilusão de onipotência, cada vez mais pesadas, até que se chegou ao pesadelo do crack. E o amor livre degenerou em sexo casual, promiscuidade e Aids.

O sonho acabou? Talvez. Mas, quem o partilhou só lamenta que haja durado tão pouco e tenha sido substituído por uma realidade tão insossa.

Eu prefiro mesmo é a postura do inesquecível Raulzito: ele nunca deixou de acreditar que a roda da fortuna giraria de novo, trazendo de volta, desta vez para ficar, o  paraíso-agora!  que iluminou nossas vidas por um fugaz instante... e, mesmo assim, marcou-nos para sempre. 

Oh, baby, a gente ainda nem começou! (por Celso Lungaretti, reminiscência dos tempos em que atuava como crítico de rock com o pseudônimo de André Mauro)
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O vibrante hino revolucionário do Jefferson Airplane

6 comentários:

Anônimo disse...

Uma coisa que nunca entendi é porque estando num dos lugares mais ricos do mundo as pessoas ficam olhando para eventos externos.
Pelo que entendi o start da contracultura foi um momento de exposição e desnudamento da extrema crueldade do complexo industrial militar que governa os USA associado a um expansor de consciência: o LSD.
Bem mestre fico feliz em informá-lo que aqui existem pelo menos duas poderosas substâncias naturais tão ou mais potentes do que o LSD: os cogumelos e a ayhuasca.
Falando apenas do que é do meu conhecimento: a Ayhuasca, posso dizer que vem sendo utilizada a milênios e proporciona experiências de pertencimento e êxtase e também bad trips quando o participante tenha esquecido da higidez moral de suas ações.
O uso ancestral desse alucinógeno faz com que cada sessão de Ayhuasca seja um mini woodstock.
Já pensou? Nus, pobres de coisas materiais e mirando o firmamento infinito em conexão com o Cosmos?
Com a chegada dos (ditos) civilizados começaram a institucionalizar o chá (ayhuasca) e existem seitas baseadas no seu uso ritual, sendo as mais conhecidas: A Barquinha, O Santo Daime e A União do Vegetal.
Acredito ser um caminho a ser conhecido e que também pode ser um refúgio na iminente catástrofe que se aproxima.
Chega de saudade!
Quando o civilizado chegou aqui os Mestres Ayhuasqueiros já estavam, ainda estão e estarão depois que toda esta civilização doentia estiver extinta.
Abrindo as portas da percepção e mostrando os encantos e belezas da Natureza Divina e o que o ser humano necessita fazer para merecer receber essa benção.
Diverso de Woodstock que foi só um espasmo de alegria numa sociedade profundamente triste a proposta e o projeto Ayhuasqueiro é uma possibilidade real e sempre atual.

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto excelente, típico
de testemunha ocular de Woodstock, Celso.

Gostaria de ver uma crônica mais detalhada sobre
contra cultura, há que diga que a nossa em um determinado
período do país, a nossa arte pop, foi mais rica e
diversificada, também gostaria ler mais sobre dicas de
filme.


Abraço, do Hebert.

celsolungaretti disse...

Anônimo do comentário inicial, de onde você tirou a ideia de que não conheço o chá de cogumelos e a ayhuasca?

Isso já rolava quando eu saí das prisões militares e, sentindo-me um estranho numa terra estranha após a derrocada dos meus ideais políticos (não havia a mais remota dúvida de que a luta armada estava derrotada e em vias de extinção), tive a sorte de reencontrar velhos amigos do movimento estudantil da zona Leste que estavam formando uma comunidade alternativa.

Pobretão como eu era, sem poder pagar analista, o ano que passei nessa comunidade foi o que me permitiu superar os traumas da prisão e o enorme desencanto subsequente. Botei minha cabeça em ordem e tive a oportunidade de constatar, na prática, que seres humanos irmanados por valores ideológicos comuns conseguem, sim, levar uma vida solidária e não-competitiva, cada um ajudando o outro e todos dividindo as responsabilidades da manutenção física do agrupamento.

Mas, a droga com a qual mais me identifiquei foi mesmo o LSD. A viagem em si era uma experiência e tanto, de certa forma desarrumava as noções que já estavam consolidadas na minha mente e abriam outras perspectivas. Eu simplesmente deixava-me levar e, nos dias seguintes, tentava entender tudo que vivenciara durante aquelas horas.

Mas, o melhor de tudo era o finalzinho da viagem, quando eu costumava sair da casa e andar pela cidade, vendo tudo e todos de uma maneira diferente, como se não fizesse mais parte daquela realidade.

Era como se tivesse morrido e, como um espírito, observasse a faina inútil dos humanos, tão infelizes, correndo sofregamente atrás de objetivos ilusórios.

Fui fundo nessas viagens durante, sei lá, meio ano, limitado apenas pela falta de grana para comprar o LSD, que era relativamente caro. A maconha para mim era apenas uma droga que dava tesão e uma espécie de bobeira. Quando não tinha uma menina à mão para transar com ela, eu achava a maconha um desperdício de tempo.

E as porcarias que a gente conseguia comprar em farmácias e usar para outro fim eram não só perigosas, como quase sempre causavam bad trips. Uma vez as ilusões eram tão ameaçadoras que forcei-me a dormir e consegui. Acordei no dia seguinte e tudo tinha voltado ao normal.

A fase terminou abruptamente: vi numa viagem de LSD uma ponte e sabia que, se a atravessasse, ficaria fora da nossa realidade (louco) para sempre. Refleti um pouco e decidi que não era isso que eu queria.

Depois dessa ocasião, cheguei até a usar o LSD duas outras vezes, mas o encanto estava quebrado, foram viagens insípidas e sem descobertas. Desencanei.

Por último: não se pode reduzir toda a contracultura e todas as transformações de 1968 e anos subsequentes apenas às drogas. A coisa foi muito além, em todos os sentidos.

A chamada "primavera de Paris", em 1968, é até hoje o mais avançado movimento revolucionário que já existiu, o único que deu um vislumbre do que poderá ser um mundo sem o capitalismo.

E a grande música do período até agora é um marco insuperável, foi o mais próximo que estivemos de um som não controlado pela engrenagem mercantilista, buscando ser uma iluminação para uma existência realmente humana.

Afora a proeza da juventude dos EUA, de forçarem a maior potência do mundo capitalista a desistir de uma guerra impopular, admitindo a derrota e saindo do Vietnã com o rabo entre as pernas.

celsolungaretti disse...

Hebert,

quisera eu ter estado em Woodstock! Pra dizer a verdade, não fui aos EUA nem então, nem nunca.

Naquele tempo, até que gostaria de ter ido. Agora dispenso. Mas, vi todos os filmes, ouvi todas as músicas, li uma imensidão de reportagens e vários livros, acompanhei com muito interesse o que se passou então na Europa e nos EUA.

Não sou dos que ficam relendo eternamente livros sobre o passado, então seria difícil para eu indicar em quais você poderia obter informações sobre tudo aquilo hoje e agora.

Do que me lembro, os melhores artigos sobre a contracultura que li de autor brasileiro eram os do Luís Carlos Maciel no Pasquim (ele tinha uma coluna underground fixa). Seu livro de 1987, ANOS 60, deve dar uma boa ideia do que ele escrevia então e era tão novo e fascinante para nós, brasileiros (hoje, evidentemente, nem tanto). E as próprias edições antigas do Pasquim já foram lançadas em forma de antologia, vale a pena dar uma olhada.

Um retrato incrível da contestação jovem estadunidense é OS DEGRAUS DO PENTÁGONO (também chamado de OS EXÉRCITOS DA NOITE), do Norman Mailer, sobre uma grande manifestação contra o complexo industrial-militar que rolou durante o dia e foi duramente reprimida na madrugada, quando a maioria dos manifestantes já tinha ido embora. Mailer era um extraordinário narrador de episódios dos quais participara pessoalmente (chegou até a ser preso junto com os estudantes naquela ocasião).

Em termos teóricos, os livros que mais influenciaram a geração 1968 foram A IDEOLOGIA DA SOCIEDADE INDUSTRIAL e EROS E CIVILIZAÇÃO, do Marcuse. Eu considero incrível o MORTE CONTRA VIDA, do Norman O. Brown (dica do Maciel no Pasquim, ele traduziu e reproduziu os principais capítulos antes de o livro ser lançado por aqui), mas poucos conheciam. Reich e Jung também eram muito lidos pelo pessoal.

Os filmes essenciais são o do festival de Woodstock (há uma versão estendida bem mais longa que a dos cinemas, eu baixei na internet), o MONTEREY POP (sobre um festival que foi uma espécie de trailer de Woodstock), o GIMME SHELTER (dos Rolling Stones), o JOE COCKER, MAD DOGS & ENGLISHMEN (o título nos cinemas daqui foi um horror: JOE COCKER E O GRUPO DA PESADA) e o FESTIVAL DA ILHA DE WIGHT de 1970. Há também os documentários musicais sobre a Janis Joplin, Jimi Hendrix, The Doors e outros.

Já dentre os alusivos àquele momento e suas consequências, o principal foi o EASY RIDER, ou SEM DESTINO. Foram WOODSTOCK e EASY RIDER que apresentaram a novidade ao público brasileiro, todo o resto veio na esteira.

São muitos, eu recomendaria especialmente CORRIDA CONTRA O DESTINO ("Vanishing Point", dirigido por Richard C. Sarafian, 1971), M.A.S.H. (d. Robert Altman, 1970), À PROCURA DA VERDADE ("Getting Straight", d. Richard Rush, 1970), VOAR É COM OS PÁSSAROS ("Brewster McCloud", d. Robert Altman, 1970) e CADA UM VIVE COMO QUER ("Five Easy Pieces", d. Bob Rafelson, 1970). E as melhores abordagens cinematográficas das óperas-rock tão características daquele período são JESUS CHRIST SUPERSTAR (d. Norman Jewison, 1973), TOMMY (d. Ken Russell, 1975) e HAIR (d. Milos Forman, 1979).

Com um pouco de esforço e paciência, vc consegue baixar tudo isso da internet.

Anônimo disse...

Bom saber que o senhor já bebeu o chá Ayhuasca.
Eu conheci a UDV exatamente no dia 12 de outubro de 1990 em uma sessão de vegetal e me associei em 1991.
Não sei em que circunstâncias você chegou a beber o chá, mas eu bebi sob a orientação de Mestre Sidon.
Hoje em dia, no site da UDV (udv.or.br), é possível ver a fotografia do meu mestre como um dos Mestres da Origem.
Foram tempos muito bons na presença daquele grande Hoasqueiro.
Também vi a possibilidade de ir além e fui, mas na companhia e sob a orientação de quem sabia o que estava fazendo, então não tive maiores problemas em "ir e voltar".
A bem dizer o choque de conhecer o além não deixa alguém louco e sim o torna consciente.
A boa notícia é que a Irmandade (UDV) cresceu um bom tanto, continua acolhedora, responsável e existe em todo o país, em São Paulo também.
Por último, posso dizer que procurei beber o chá porque ele tem muitas vantagens sobre as drogas que são comercializadas normalmente.
Primeira de todas não é viciante.
Faz bem a saúde, não é ilegal (institucionalizou-se até nos USA) e tem custo mínimo.
Os demais benefícios podem ser conhecidos por quem tiver a sorte e o merecimento de chegar a beber o chá em alguma instituição séria.
Como vê nós não temos nomes estrambólicos e nem atitudes radicais. As sessões de vegetal são muito tranquilas.
Respeitando a experiência individual de todos os que buscam posso asseverar que não ficamos a dever nada aos estrangeiros e arrisco dizer que nossa história vem sendo vitoriosa.
Acredito que, até por estarmos por aqui, vale a pena procurar conhecer o que nós brasileiros temos feito no sentido do bem comum e aproveitar as coisas boas que pessoas quase divinas trouxeram no sentido da nossa evolução.

celsolungaretti disse...

Não foi bem o que eu quis dizer, companheiro. Eu cheguei só até o chá de cogumelos, uma vez, e não me encantou.

Mas, o Ayahuasca não me passou despercebido, li sobre ele e conversei com pessoas que o defendiam.

Depois, a morte do cartunista Glauco atraiu muito a atenção sobre o Santo Daime e, evidentemente, acompanhei aquelas discussões todas.

Sua primeira mensagem parecia supor que eu ignorasse o bê-a-bá da coisa. Ora, dificilmente eu não tomo conhecimento de algo assim.

Mas, minha ruptura com as drogas foi definitiva também por outro motivo. Alguns anos depois, comecei a ter fortes ataques de labirintose, como consequência das torturas que sofrera no DOI-Codi do RJ e na PE da Vila Militar.

Estouraram-me o tímpano do ouvido direito e durante todo o período da prisão não recebi nenhum tratamento digno desse nome, só me davam gotas para pingar no ouvido que supurava praticamente o tempo todo.

Mas, saí da prisão tão abalado que fui é botar minha cabeça em ordem naquela comunidade alternativa. Não procurei médico, até porque não teria como pagar. Controlava a coisa botando algodão no ouvido.

Quando comecei a ter ataques de tontura muito forte, felizmente havia entrado na ECA/USP e pude me tratar gratuitamente por lá. Acabei fazendo três cirurgias ao longo dos tempos, a perfuração do tímpano diminuiu mas não fechou, a supuração passou a ocorrer só se eu deixasse entrar água e os ataques de tontura só se trabalhasse demais, passasse várias noites dormindo mal ou vários dias com muito nervosismo, coisas assim.

Ou seja, há uns 40 anos descobri que tinha de evitar certos excessos ou ficaria de molho durante vários dias por causa dos ataques de tontura. Isso esfriou ainda mais meu interesse por quaisquer drogas alucinógenas.

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