sábado, 20 de julho de 2019

OS SÚDITOS DE HOJE NEM SEQUER SABEM QUE NÃO SABEM QUAL É A VERDADEIRA CAUSA DE SUAS ADVERSIDADES – 1

dalton rosado
O TIRANO É ABSTRATO, AINDA QUE
 TENHA REPRESENTANTES FÍSICOS 
"Sede resolutos em não servir mais e sereis livres. Não
vos peço que o enfrenteis ou o abaleis, mas apenas
que não o sustenteis mais, e o vereis, como um
grande colosso do qual se retirou a base,
despencar e despedaçar-se debaixo
do próprio peso" (Étienne de
La Boétie, filósofo)
Considero a pequena obra do francês Étienne de La Boétie (1530-1563), escrita por volta de 1548, quando tinha apenas 18 anos, denominada Discurso sobre a servidão voluntária, como o mais vigoroso e lúcido libelo acusatório da tirania absolutista.

Esta já começava a dar sinais de inaptidão, não só pela sua obsolescência histórica, mas por estar diante da nova ordem mercantilista que pedia passagem para estabelecer-se, substituindo a ordem fisiocrata feudal então vigente.

As transformações provocadas pelas mutações no modo de produção de uma sociedade se operam dentro de um tempo histórico que costuma ser bem diferente do tempo de vida de um ser humano. 

As ebulições sociais que fervilhavam ao seu tempo de vida, expressas nas guerras religiosas e no cisma católico, provocaram o massacre de São Bartolomeu, em Paris, com o assassinato em massa dos convertidos pela reforma protestante, defensora do direito à usura, o lucro, antes somente permitido para determinadas castas sociais.

Tais conflitos se apaziguaram (relativamente) em 1598, com o édito de Nantes, que estabeleceu a liberdade de culto religioso, somente vindo a eclodir no final do século 18, com a revolução francesa; ou seja, mais de 200 anos após, e assim mesmo com as marchas e contramarchas ocorridas durante o século seguinte. 

Observe-se que até o culto religioso obedece às mutações no modo de produção social, numa demonstração inequívoca do liame indissolúvel entre economia, política e religião (tal como agora ocorre no Brasil). 

O Discurso sobre a servidão voluntária tinha um cunho revolucionário para a época, daí só ter sido impresso, secretamente, por volta de 1588, depois da morte do autor e  por iniciativa de Michel de Montaigne, um seu companheiro de ideias. Étienne de La Boétie morreu cedo, aos 31 anos, sem imaginar que a sua obra teria tanta repercussão futura.  

A atualidade da obra de La Boétie se deve a ele haver detectado e discorrido de modo brilhante, há cerca de 500 anos, sobre a aceitação voluntária da tirania pelos seus súditos e o desconhecimento da própria força por parte dos ditos cujos, tal como agora ocorre. 

Naquele tempo o poder monárquico-eclesiástico era personalíssimo, e se desejava, ainda embrionariamente, torná-lo menos pessoal, diluindo-o em esferas distintas sob o império da lei que, imaginava-se, daria tratamento isonômico a todos. Este era o conteúdo revolucionário da obra de Boétie, capaz de levá-lo à guilhotina por subversão à ordem decadente então estabelecida.

Não foi preciso condená-lo à morte porque ele sofreu um óbito natural e precoce, para felicidade dos tiranos de então; os seus seguidores é que sofreram o diabo devido às (pretensas) heresias defendidas. É sempre assim, a vanguarda sempre paga um alto preço perante os Brilhantes Ustras de cada período, até seus expoentes se tornarem reconhecidos como autênticos heróis e mártires. 

Nos tempos atuais a coisa está mais grave justamente porque, dada a decadência de um modo de produção que já não se coaduna com as necessidades de suprimento das demandas sociais de consumo (a forma entrando em choque com o conteúdo), sucedem-se no poder político governantes dos mais vaiados matizes ideológicos, num movimento que denomino de pêndulo da ineficácia, à medida que os súditos (os eleitores) são levados a crer que, com uma mera troca de governantes, resolver-se-ão os problemas sociais crescentes. 

A diferença daquela pretensão revolucionária de Boétie para os dias de hoje é que o tirano de agora é uma lógica abstrata, ainda que representada por pessoas do mundo econômico (principalmente) e por políticos que são submissos ao fetichismo da mercadoria e da sua funcionalidade autotélica, que enquadra toda a sociedade num racionalismo cartesiano no qual pontuam chocantes posturas anti-civilizatórias. 

São os casos de se deixar que morra (ou mesmo que se mate dolosamente) uma parte da população para que a outra sobreviva; e de se considerarem tais crimes contra a humanidade como procedimento correto e racional! 
Por Dalton Rosado

A expulsão de imigrantes desesperados é o exemplo mais eloquente do racionalismo desumano ao qual já me referi neste artigo recente, caracterizado pela preponderância do irracional sobre o racional a partir de uma lógica obtusa que tudo justifica. Um absurdo! 
(continua neste post)

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