segunda-feira, 18 de março de 2019

CARTA ABERTA AO LULA – 1

Pouco mais de 40 anos nos separam daquele ano de 1978, quando participei da sua palestra na Associação Cearense de Imprensa – e fiquei impressionado com a sua desenvoltura. 

Até os erros de português eram bem-vindos, porque evidenciavam a autenticidade do operário excepcionalmente hábil com as palavras, capacidade de liderança e discernimento que então conheci. Percebi que estava diante de um futuro protagonista da História.

Você era o dirigente sindical trabalhista do segmento industrial mais forte e organizado do país, os operários metalúrgicos do ABC paulista, afrontando a ditadura militar que, apesar de dar os seus primeiros sinais de enfraquecimento político e econômico, ainda estava bastante viva e com todos os seus instrumentos de opressão e arbítrio em plena vigência. 

Ali, ouvi você falar da necessidade de criação de um partido político que representasse o interesse dos trabalhadores e pudesse galvanizar em torno de si as bandeiras de defesa dos interesses populares a partir do maior segmento populacional de qualquer país sob a égide do capital – o dos trabalhadores. 

Decidi engajar-me nos esforços para construção de tal partido e, no início dos anos 80, fundamos o Partido dos Trabalhadores no Ceará, justamente num momento em que o coronelismo (os coronéis Virgílio Távora, César Cals e Adauto Bezerra se revezavam no poder do Estado, indicados pelos governos militares) dominava a cena política. 
Primeira prefeita de capital eleita pelo PT, Maria Luíza...

Nem mesmo o PMDB, considerado oposição consentida, estava estruturado em todo o Estado.

A cada dia o entusiasmo aumentava, com a adesão dos movimentos populares (sindicais, de mulheres, de bairros, etc.) demonstrando a saturação do regime militar, que se enfraquecia e se tornava cada vez mais impopular. 

Inflação alta, censura, intervenções sindicais, apadrinhamentos espúrios, delações, demissões, perseguições e assassinatos, aumento da dívida pública e dos juros, deterioração dos serviços públicos, desemprego e corrupção, eram os combustíveis da decomposição do regime militar. O nosso discurso tomava ares de heroica resistência.

A unidade de pensamentos os mais diversos contra o regime militar nos confirmava que este não passava de um Golias com pés de barro, cada vez mais vulnerável. 

Mas, tal unidade circunstancial embutia problemas conceituais e encobria verdades que somente iriam se mostrar na sua cruel e nefasta realidade algum tempo mais tarde.

É incrível como em apenas cinco anos, em 1985, iríamos conquistar a primeira vitória pelo PT num pleito eleitoral para um aparelho estatal tão importante como a prefeitura de Fortaleza.  
...foi hostilizada sem dó pelo sucessor Ciro Gomes.

O PT elegia Maria Luiza Fontenele, uma mulher que se fizera por ela mesma; bela e revolucionária; pertencente a um dos muitos grupos marxistas tradicionais que se abrigavam sob o guarda-chuva aparentemente protetor do Partido dos Trabalhadores, o que nos dava a ilusão de que a convergência de propósitos eliminaria diferenciações conceituais já perceptíveis.   

A partir daí é que se tornou explícita a inconciliável convivência entre um projeto revolucionário de poder (com todos os equívocos conceituais que viríamos a reconhecer bem mais tarde) e um outro projeto, o da social-democracia do núcleo dirigente do PT, com pretensão de harmoniosa convivência sistêmica e conciliatória dos trabalhadores com a poderosa elite política brasileira. 

Os dois projetos estavam equivocados. O primeiro porque embutia a ideia irrealista de que, a partir do aparelho de Estado, se poderia promover o avanço das conquistas populares no sentido da consolidação de um governo verdadeiramente popular, que servisse como alicerce de um poder revolucionário.

Não nos apercebíamos de que o próprio poder verticalizado e pretensamente revolucionário a ser alcançado por etapas, sem questionar as categorias capitalistas como base de sua sustentação, constituía-se num equívoco conceitual e estava fadado a produzir resultados pífios, justamente porque quedava sob o comando fetichista da lógica do dinheiro e das mercadorias.  
Ciro Gomes e Tasso Jereissati: afinidades liberais.

Então, apesar de termos promovido um saneamento financeiro nas contas públicas, hoje reconhecido por todos os nossos adversários da época e atuais, terminamos por frustrar as expectativas (ilusórias) de redenção das precárias condições de vida dos munícipes.

Ou seja, fizemos um trabalho de saneamento financeiro sem corrupção que somente serviu para que os governantes que nos sucederam (contando, ademais, com os beneplácitos da Constituição de 1988, que veio a vigorar no ano seguinte) pudessem se beneficiar dessa faxina

Até hoje o Ciro Gomes e seus seguidores colhem os benefícios eleitorais dessa circunstância inicial que alavancou os seus ganhos eleitorais futuros. Tomou conta até da sigla do PT no Estado do Ceará.  

O nível de exigência de melhora e o imediatismo por parte da população, a qual imagina que o governante político detém um poder que não possui, principalmente o governante municipal, levou, inevitavelmente à frustração das expectativas que despertamos.

O segundo projeto, da social-democracia petista, peca pelo fato de que é capitalista na sua base ontológica e, assim, termina sempre garroteado pelo pensamento liberal capitalista que está sempre à espreita para  assenhorear-se do poder estatal tão logo se mostrem evidentes os sintomas de frustração popular.
Qualquer semelhança com o que ocorreu com Boçalnaro, o ignaro não é mera coincidência, mas uma circunstância histórica inevitável. (continua neste post).

(por Dalton Rosado)

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