(continuação deste post)
Invasão do campus da UnB em 1965; outras viriam, inclusive a chamado de um reitor. |
Um regime que expurgou da UnB seus dois primeiros reitores, nomes primeiros da educação e do compromisso ético com a escola e com a liberdade do pensamento: Darcy Ribeiro, criador e fundador da UnB, e Anísio Teixeira, lançador do movimento da Escola Nova, uma escola que enfatizava o desenvolvimento do intelecto e a capacidade de julgamento — tudo aquilo que sofre censura do ordinário projeto da Escola sem Partido sonhado hoje pelo capitão Bolsonaro e sua turma.
A nova ordem que trazia a desordem institucional afastou ambos — Darcy e Anísio — da UnB, de Brasília, das escolas, dos jovens, do país. Darcy e Anísio, as duas referências maiores da UnB, permaneceram apenas 25 meses à frente da universidade.
Darcy Ribeiro, lembrado com admiração e carinho... |
Azevedo desembarcou na UnB em maio de 1976, uma semana após o Dia Nacional de Lutas contra Prisões Arbitrárias. O capitão começou punindo os estudantes, os estudantes reagiram com uma greve de quatro meses e Azevedo chamou a PM. Era a quarta invasão armada do campus, desde o golpe de 64. Mais de mil estudantes foram expulsos, bem como professores de esquerda.
Azevedo era homem de confiança do Cenimar, o serviço secreto da Marinha que sequestrou Honestino Guimarães, um estudante de Geologia de 18 anos. Presidente da UNE na clandestinidade, ele foi preso pela Marinha no Rio, torturado pelo Exército em Brasília e levado pela Aeronáutica ao Araguaia, onde foi executado e enterrado na selva pelas tropas que combatiam a guerrilha. Honestino, como Kucinski, é um dos desaparecidos da ditadura.
O capitão-reitor ainda convocaria mais duas vezes a PM para sustentar sua gestão linha-dura, que só acabaria em março de 1985, três dias antes que o último general da ditadura, seu amigo João Figueiredo, deixasse o Planalto pela porta dos fundos para não passar a faixa ao sucessor civil.
...e o seu antípoda, relegado ao lixão do esquecimento. |
Os grandes homens, como dizia a Oração Fúnebre do ateniense Péricles, estão guardados em nossos corações e mentes, mas também esculpidos na pedra dos monumentos, dos museus, das escolas.
Aqui na UnB temos a Fundação Darcy Ribeiro, o Pavilhão Anísio Teixeira, a revista Darcy e o Memorial Darcy Ribeiro, que ele mesmo – fiel ao seu estilo sedutor – batizou como beijódromo.
O DCE da UnB tem o nome de Honestino, que ainda batiza o Museu Nacional, na Esplanada dos Ministérios. A ponte que cruza o lago Paranoá teve, por dois anos, o nome de Honestino, mas uma decisão da Justiça, em 2017, devolveu ao lugar o batismo original Ponte Costa e Silva, o general que firmou o AI-5 que liberou a repressão mais sangrenta que fez desaparecer Honestino e tantos outros.
O capitão Azevedo morreu em fevereiro de 2010 — e não tem um só espaço com seu nome na UnB que ele ultrajou e oprimiu. Azevedo foi descartado no lixão do esquecimento.
Lamento o revisionismo histórico do capitão Bolsonaro e daqueles que, de forma apressada, carimbam como terroristas todos os que chegaram ao limite da própria vida para confrontar o arbítrio. É uma leviandade que fere os fatos, a memória e, principalmente, a universidade, a nossa universidade. Foi na parcela mais consciente, mais insubmissa, mais generosa da juventude que se buscou a força do bem para o bom combate, o justo combate ao mal da força e da prepotência.
Esse bando de irmãos estava aqui, na universidade. Para eles o bardo escreveu, em Henrique V :
Honestino Guimarães, executado pela repressão ditatorial |
"... E nenhuma festa de São Crispim acontecerá/ Desde este dia até o fim do mundo/ Sem que nela estejamos lembrados;/ Nós poucos, nós poucos e felizes, nós bando de irmãos;/ Pois quem hoje derramar seu sangue comigo,/ Será meu irmão; seja ele o mais vil que for/ Este dia enobrecerá sua condição".
Foi da universidade, desse bando de irmãos, que se elevou o protesto mais veemente, a rebeldia mais indignada, o gesto mais altivo contra o mal, a prepotência, a força. Repudiando o que fizeram aqui, ao atropelar a sagrada autonomia da Universidade; denunciando o que fizeram ali, ao afrontar o sagrado império da lei; ao violar a Constituição, o Parlamento, os tribunais, as liberdades, ferindo os direitos humanos, machucando o corpo humano.
Muitos jovens deste país poderiam ter calado, ter sufocado, ter consentido com o que se fazia e desfazia. Mas, reagiram, buscaram as ruas, as escolas, os parlamentos.
Quando esses espaços foram cercados, ocupados e desfigurados pela força, foram obrigados à resistência e ao confronto extremo.
No limite do insuportável, abandonaram famílias, carreiras, amigos, afetos e a luz do dia para um combate desproporcional, arrojado, irrestrito, utópico contra a violência que atingia a todos.
Não fizeram aquilo porque eram mandados, comandados, teleguiados. Fizeram tudo aquilo porque queriam, porque sentiam, porque deviam, pelo justo imperativo da sobrevivência, pelo forte motivo da urgência, pelo simples dever de consciência. Arriscaram suas vidas, acabaram suas vidas lutando e combatendo por nossas vidas.
Muitos jovens deste país poderiam ter calado, ter sufocado, ter consentido com o que se fazia e desfazia. Mas, reagiram, buscaram as ruas, as escolas, os parlamentos.
Quando esses espaços foram cercados, ocupados e desfigurados pela força, foram obrigados à resistência e ao confronto extremo.
No limite do insuportável, abandonaram famílias, carreiras, amigos, afetos e a luz do dia para um combate desproporcional, arrojado, irrestrito, utópico contra a violência que atingia a todos.
"não eram comandados, agiam pelo simples dever de consciência" |
Não fizeram aquilo porque eram mandados, comandados, teleguiados. Fizeram tudo aquilo porque queriam, porque sentiam, porque deviam, pelo justo imperativo da sobrevivência, pelo forte motivo da urgência, pelo simples dever de consciência. Arriscaram suas vidas, acabaram suas vidas lutando e combatendo por nossas vidas.
Que se diga ao capitão Bolsonaro: esses jovens foram resistentes, como a Resistência francesa que lutou contra o invasor e o opressor nazista. Foram inconfidentes, como os heróis da conjuração mineira que anteciparam o grito por liberdade. Foram combatentes, como os jovens do exército brancaleone de George Washington que desafiaram o Império britânico para estabelecer os fundamentos do regime democrático. Foram insurgentes como os negros que combatiam o apartheid na África do Sul.
Lutaram pela liberdade contra a opressão de exércitos, regimes e sistemas que só sobrevivem à custa da liberdade dos outros. Fizeram levantes sancionados pelo direito imemorial e universal à luta contra a tirania.
Que se explique ao capitão Bolsonaro: guerrilha não se confunde com terrorismo, definido sim pelo deliberado objetivo de infundir terror entre a população civil, sob o risco assumido de vítimas inocentes – como no caso do terror consumado do 11 de Setembro nas Torres Gêmeas de Nova York, como no caso do terror frustrado da bomba do DOI-Codi no Riocentro do Rio de Janeiro.
É por isso que ninguém, nem mesmo um cínico, se atreve a escrever terroristas de Sierra Maestra ou terroristas do Araguaia. Eram guerrilheiros, não terroristas.
"terrorista foi o atentado frustrado contra o Riocentro" |
Que se esclareça ao capitão Bolsonaro: terrorista era o Estado, que usou da força e abusou da violência para alcançar e machucar dissidentes presos, indefesos, algemados, pendurados, desprotegidos diante de um aparato impiedoso que agia à margem da lei, na clandestinidade, nos porões, torturando e matando sob o remorso de um codinome, encoberto na camuflagem de um capuz.
Que se lembre ao capitão Bolsonaro: terroristas eram os assassinos de Honestino Guimarães, Vladimir Herzog, David Capistrano da Costa, Manoel Raimundo Soares, Stuart Angel Jones, Manoel Fiel Filho, Paulo Wright, Zuzu Angel e tantos outros. (por Luiz Claúdio Cunha, ex-consultor da Comissão Nacional da Verdade, jornalista e escritor, em artigo publicado no site Congresso em Foco)
(continua neste post)
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