dalton rosado
CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DA INSATISFAÇÃO E DAS FÚRIAS SOCIAIS
No filme Um Dia de Fúria (de 1993, dirigido por Joel Schumacher), um atravancamento de trânsito sem solução à vista é a gota d’água que fez transbordar o copo de fatos enervantes no cotidiano de um cidadão comum (Michael Douglas), levando-o a uma reação desproporcional, devastadora, contra tudo e contra todos que aparecem à sua frente.
É como todos atualmente estamos, uns mais, outros menos: à beira de explosões de insatisfação individual e de fúria coletiva.
Contribuem para tal sentimento a irracionalidade de muitas das nossas práticas sociais, como:
— exatamente, o trânsito caótico que polui com a emissão de CO² e paralisa a mobilidade urbana em benefício de interesses industriais capitalistas inconfessos;
— exatamente, o trânsito caótico que polui com a emissão de CO² e paralisa a mobilidade urbana em benefício de interesses industriais capitalistas inconfessos;
— a inconsciência social sobre os problemas de base e conteúdos conceituais; e
— o desconhecimento de saídas para os impasses sociais geradores da desigualdade de renda e da violência (o que sucede também em países ricos como os Estados Unidos, no qual ocorrem repetidamente massacres de inocentes por franco-atiradores).
Quem gostaria de estar no lugar de Michael Douglas... |
Estes e outros fatores se somam negativamente, evidenciando a insatisfação com nosso modo de ser social; e tiveram como um reflexo o resultado aberrante da eleição presidencial brasileira.
O ódio incontido provocou a radicalização de posicionamentos pessoais, afastando familiares uns dos outros e interferindo nas mais sólidas relações de amizade.
Evidenciou-se a atomização das pessoas e seu individualismo, que os transformam em mônadas sociais geradas por um modo de relação social que, antes de ser aglutinador dos seres humanos num processo comportamental solidário, torna-as adversárias compulsivas na disputa pela vida. Trata-se de uma sociedade alienada de si mesma, como dizia Karl Marx.
Evidenciou-se a atomização das pessoas e seu individualismo, que os transformam em mônadas sociais geradas por um modo de relação social que, antes de ser aglutinador dos seres humanos num processo comportamental solidário, torna-as adversárias compulsivas na disputa pela vida. Trata-se de uma sociedade alienada de si mesma, como dizia Karl Marx.
A opção de votar nas últimas eleições, coonestando a prevalência de algo que havia sido previamente escolhido (um enquadramento a priori), já é fruto de inconsciência social, pois atesta o desconhecimento do conteúdo e do significado negativo do processo eleitoral enquanto mantenedor de um modo social esquizofrênico.
Entretanto, o problema é mais profundo, dada a extrema superficialidade dos mecanismos psicológicos de escolha da opção vencedora, fortemente influenciada por uma espécie de rejeição indeterminada, na base do sou contra tudo isso que está aí, ainda que o conteúdo dessa contrariedade sobre o que está posto seja inconsciente.
...decerto se identificou também com esta pantomima pueril |
Sob tal modo de mediação social, todas as atividades sociais são transformadas em mercadorias (educação, saúde, arte, esporte, lazer, etc.); e a própria vida se torna mercadoria, a partir do caráter onívoro desta última.
Assim, graças à forma de obtenção miserável do sustento dos indivíduos sociais transformados em cidadãos pelo trabalho abstrato (e que agora é-lhes negado pela própria dinâmica contraditória da alienação social que provoca o desemprego estrutural), não é de estranhar-se que haja uma raiva latente e pronta para explodir a qualquer momento.
O que passa nas cabeças dos milhões de desempregados que veem seus filhos chorarem de fome, sem que possam reverter tal quadro por meio dos mecanismos sociais que lhe são oportunizados?
O que passa pela cabeça dos milhões de subempregados (o salário médio brasileiro é de R$ 1.943, segundo o IBGE), ao sentirem-se brasileiros de 2ª classe, com poder aquisitivo que lhes permite apenas tomar umas pingas e chorar de alegria ou tristeza conforme os resultados obtidos por seu time, numa catarse social mal resolvida?
Estão cientes de que podemos chegar a Marte, mas não podem comprar sequer os víveres de que carecem ou bancar serviços (também mercadorias) essenciais.
Os supermercados estão cheios de mercadorias, mas os indivíduos sociais estão atolados em dívidas e carentes da mercadoria dinheiro (equivalente geral e que não tem valor de uso intrínseco), que lhes facultaria a aquisição das mercadorias neles expostas.
É que, para desfrutar seu valor de uso, há que dispor do valor de troca que o capitalismo lhes nega.
Recai sobre tal carência uma culpa pessoal introjetada nas mentes dos indivíduos sociais como se estivéssemos (e estamos) numa guerra de mercado, que foram condicionados a encarar como algo saudável, e na qual há vencedores e perdedores. Ademais, foi-lhes martelado nas mentes que alguém sempre tem de perder, então eles devem saber suportar a derrota...
Trata-se de numa disputa irracional negativa entre indivíduos sociais, na qual obrigatoriamente alguém ganha e alguém perde, com todos se tornando adversários de todos.
O que dizer do último espetáculo de baixaria protagonizada por torcedores argentinos do River Plate, ao apedrejarem o ônibus que conduzia ao estádio a delegação do Boca Juniors, para a final da Copa Libertadores da América de 2018?
Não seria senão a ebulição de um processo de catarse social de fúria e insensatez por parte de uma multidão ensandecida? Qualquer ilação com a debacle econômica argentina não é mera coincidência.
O que dizer das manifestações sociais, cada vez mais explícitas, em que parcelas da população dão seu assentimento ou estimulam estridentemente as práticas de homofobia, xenofobia, misoginia, racismo e indução à violência como resposta a uma violência estrutural?
Refletem, evidentemente, um sentimento irracional de insatisfação contra tudo que está aí, sem que os autores dessas manifestações saibam as causas de base e as soluções possíveis.
Refletem, evidentemente, um sentimento irracional de insatisfação contra tudo que está aí, sem que os autores dessas manifestações saibam as causas de base e as soluções possíveis.
O que dizer de um candidato eleito pelo acórdão da opinião pública majoritária repetir amiúde a simbologia gestual de estar portando armas letais em cada uma de suas mãos?
Há poucos dias fiquei sabendo de uma pesquisa de opinião pública na qual se constatou que apenas uma pessoa entre vinte conhece o significado e existência do holocausto.
Isso significa que, além da uma vida social na qual se aliena a própria existência a partir da alienação do trabalho abstrato, grassa uma desinformação histórica e uma amnésia social capaz de reproduzir perigosamente a prática de crueldades no seu mais absurdo e surreal exercício pelo ser humano contra o próprio ser humano.
Considero que a regressão civilizatória ora em curso é resultado de um modo de produção social que encontrou o seu limite existencial, mas não aceita a sua superação e, assim, nos conduz em velocidade acelerada para o abismo.
Uma lógica destrutiva, reificada, que dá ordens aos seus súditos como num estado de hipnose coletiva.
Para além do espanto que nos causa tal estágio de regressão, fica-nos a certeza de que nosso modo social representa apenas um dado histórico da existência humana (que poderia ter sido diferente), não naturalmente antropológico; ou seja, trata-se apenas de um proceder histórico que chega ao seu estágio de morte, após cumprir seu ciclo de nascimento e vida sangrenta.
A barbárie em curso é o último suspiro de um sistema moribundo, antecedendo a emergência de uma vida social emancipada.
Vivemos o triste e trágico momento do ocaso de um modelo social esgotado e há um alto preço a ser pago durante a necessária transição para uma sociedade humanizada.
Os pósteros certamente se apiedarão de nós, os que temos de suportar este sombrio início de século XXI. (por Dalton Rosado)
Os pósteros certamente se apiedarão de nós, os que temos de suportar este sombrio início de século XXI. (por Dalton Rosado)
Trecho citado de Um Dia de Fúria. Para quem quiser fazer
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