terça-feira, 30 de outubro de 2018

À SOMBRA DE FRACASSOS SECULARES

David: entre trevas e ilusões.
A revolução russa completará 101 anos no próximo dia 7. No momento do cinquentenário, o filósofo Ernest Bloch escreveu um texto no qual fazia um balanço pessimista da experiência revolucionária, afirmando, entre outras coisas, que seria necessária uma correta correção de rumos para que “quando a revolução russa estiver celebrando 100 anos, não estejamos ainda enfrentando a fome, a guerra e o fascismo”.

Infelizmente, aos cem anos mais um, tudo isto está bem presente entre nós. A revolução sumiu do horizonte, embora ainda esteja presente na forma de espectro, o mesmo que já era vaticinado por Marx no século XIX. 

O resultado catastrófico da perda do horizonte revolucionário foi o rebaixamento do programa político das forças de esquerda ao redor do mundo. Até mesmo a socialdemocracia, que existia enquanto limite burguês frente ao ímpeto da revolução, foi eliminada. 

Só restou às forças à esquerda administrar o inadministrável, transformando-se em força reacionária, capitã de ataques à classe trabalhadora. Deste modo, o ônus foi duplo: não apenas assumiram o déficit de governar sem mudar nada, como também romperam o vínculo com a população trabalhadora ao conduzirem medidas pró-capital. 

O próprio regime capitalista entrou em estado terminal, tornando as crises cada vez mais corriqueiras e a pobreza cada vez mais comum. 
"Desde que ajudou a reprimir os protestos de 2013, o que a esquerda faz é fortalecer a extrema-direita"
O neoliberalismo, regime específico de acumulação capitalista, foi instituído na década de 1970 justamente em resposta à crise terminal do capitalismo. Diante da impotência do sistema produtivo em reproduzir o capital em ritmo aceitável, a saída foi declarar aberta a pilhagem completa por meio da financeirização generalizada. O mundo virou uma grande ciranda financeira. 

A crise de 2009 foi o primeiro grande baque da lógica especulativa do neoliberalismo. O sistema sustentado por papéis fictícios viu-se, de repente, pairando no ar. Os devastadores efeitos da crise abalaram todo o regime político neoliberal. A ordem geopolítica pós-guerra fria afundou e uma confusão foi instalada no mundo. 
 "pilhagem completa por meio da financeirização exagerada"

A esquerda foi pega de surpresa. Acomodada à dinâmica de administrar o neoliberalismo, sem programa reformista ou revolucionário, simplesmente afundou junto com o sistema político. 

Abriu-se uma janela revolucionária que, no entanto, não pode ser aproveitada, pois não havia nenhum norteamento a seguir. 

O ímpeto revolucionário esvaiu-se em insurreições  superficiais, que ou terminaram por falta de fôlego (Occupy Wall Street, jornadas de junho de 2013, Indignados, etc), ou entraram num lodaçal sanguinário (Primavera Árabe na Síria e no Iêmen). As insurreições globais entre 2009 e 2014 foram mais espasmos do corpo social lutando para reagir à infecção, mas sem o auxilio do medicamento correto. 

Logo a poeira baixou, mas a insatisfação persistiu. A burguesia percebeu que era preciso lançar mão de uma nova estrutura política capaz de sustentar um regime econômico de neoliberalismo ainda mais radicalizado. Por isso, o fascismo começou a ressurgir ao redor do mundo, sob moderna roupagem, atinado às práticas da era digital e do sistema pós-fordista de produção. 

Muita gente nega a existência de uma ascensão fascista ao redor do mundo pois os movimentos atuais não teriam as características do movimento originário do século XX. Ora, claro que não têm, pois estamos em outra época histórica, com outras estruturas sociais. 
O esbravejador grosseiro foi substituído pelo pop star carismático

Hoje, p. ex., não há mais a figura da rígida disciplina fordista. A submissão às personalidades é feita hoje pelo culto ao pop star. O líder fascista não é mais o esbravejador grosseiro do século XX, mas a personalidade carismática e descolada. 

Tal fascismo atualizado capitalizou a insatisfação popular aproveitando-se do clima de desesperança e, sobretudo, de falta de rumo das massas. A gigantesca destruição institucional operada pelo neoliberalismo, com a democracia se tornando opaca aos interesses populares e o irracionalismo se generalizando, permitiu a maximização do uso de mentiras e da disseminação do ódio por parte deste movimento.

O fato de os partidos de inspiração socialista terem passado décadas, em vários lugares, sustentando o regime agora falido, foi um fator importante que permitiu ao neofascismo culpabilizar a esquerda pela crise amargada pelas pessoas. 

À esquerda, rebaixada em seu programa, umbilicalmente ligada ao regime político do neoliberalismo, só restou assistir, incrédula, ao avanço das hostes barbaras e à adesão massiva do povo ao que de pior existe na humanidade. 
"o homem certo para conduzir a expropriação generalizada"

É preciso falar isso tudo para entender a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência. Uma nulidade completa será o responsável principal pela vida de todo um país dentro de dois meses. Contudo, sua vitória só é possível de ser compreendida nos marcos gerais da crise programática da esquerda, com a ausência de um horizonte revolucionário e a adaptação de seus partidos à lógica administrativa do neoliberalismo. 

Bolsonaro galvanizou o descontentamento popular com o regime neoliberal falido. Ao mesmo tempo, com seu discurso radicalmente anti-humanista e repressivo, conseguiu cair nas graças da burguesia nacional: é o homem certo para conduzir a expropriação generalizada do povo. 

Ele não possui programa. Nem sequer possui um norte. Sua pauta é inteiramente negativa. Enquanto peão neofascista do movimento reacionário mundial, sua missão é única e exclusivamente de devastar o país e subjugar as classes subalternas. É uma bucha de canhão a ser rapidamente usada. 

E a esquerda? Depois de ter cumprido papel repressivo em 2013, seu destino parece ser o de tentar reviver o passado. A esquerda brasileira simplesmente não possui qualquer solução para a crise atual. Até por isso, acabou sendo derrotada por uma nulidade cujo máximo de formulação intelectual sobre os desafios presentes era dizer: tem que mudar issaí
"O Brasil precisa de uma figura como Bernie Sanders"

O eleitor, ao que parece, preferiu o sujeito da frase – que, ao menos, admite a necessidade de se mudar a situação atual – do que gente que acredita que as instituições estão funcionando perfeitamente. 

Na verdade, a história da esquerda brasileira de 2013 até hoje tem sido a história do fortalecimento da extrema-direita. Seu papel tem sido apenas o de sufocar o surgimento do novo autêntico. 

No momento, o Brasil precisa de uma figura como Bernie Sanders, alguém que possa chutar a porta do sistema e apontar a podridão generalizada do regime político e econômico; não precisa de alguém que candidamente acredita ser possível ganhar eleição se fingindo de religioso. 

No entanto, o que mais precisamos é retomar o norte revolucionário. A própria pressão revolucionária é fator determinante de combate ao neofascismo e de surgimento de tendências reformistas do capitalismo. 

Sem a radicalidade revolucionária, só nos restará viver permanentemente entre as trevas de um governo Bolsonaro e as ilusões de um governo petista. (por David Emanuel de Souza Coelho)

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