domingo, 12 de agosto de 2018

A POLÍTICA IDENTITÁRIA IMPEDE O SURGIMENTO DE UMA GENUÍNA RESISTÊNCIA ÀS ELITES

Por Tomasz Pierscionek
O fenômeno da política de identidade que se estende pelo mundo ocidental é uma estratégia de divisão e conquista que impede o surgimento de uma genuína resistência às elites.

Um princípio fundamental do socialismo é a ideia de uma solidariedade supranacional abrangente que une a classe trabalhadora internacional e sobrepõe-se a qualquer fator que possa dividi-la, como nação, raça ou gênero. Os trabalhadores de todas as nações são parceiros, tendo igual valor e responsabilidade numa luta contra aqueles que lucram com seu cérebro e músculo.

O capitalismo, especialmente em sua forma mais evoluída, exploradora e sem coração – o imperialismo –, prejudicou certos grupos de pessoas mais do que outros. Impérios coloniais tendiam a reservar sua maior brutalidade para os povos subjugados, enquanto a classe trabalhadora dessas nações imperialistas se saía melhor em comparação, ficando mais próxima das migalhas que caíam da mesa dos poderosos. 

A luta de classes internacional visa libertar todas as pessoas, em todos os lugares, do trabalho penoso do capitalismo, independentemente do seu grau de opressão passado ou presente. A frase uma lesão a um é um dano a todos sintetiza tal mentalidade, conflitando com a ideia de priorizar os interesses de uma facção da classe trabalhadora sobre todo o coletivo.

Desde a última parte do século 20, enraizou-se entre a esquerda (pelo menos no Ocidente) uma tendência de inspiração liberal que a fragmentação de uma identidade única, baseada na classe, em favor de múltiplas identidades baseadas em gênero, sexualidade, raça ou qualquer outro fator divisor. Cada subgrupo, cada vez mais alienado de todos os outros, concentra-se na identidade compartilhada e experiências únicas de seus membros, priorizando seu próprio empoderamento. Qualquer um fora deste subgrupo é rebaixado ao nível de aliado, na melhor das hipóteses.
A Grande Revolução Francesa sucumbiu às divisões internas

No momento em que escrevo, há aparentemente mais de 70 opções diferentes de gênero no Ocidente, para não mencionar inúmeras sexualidades – a sigla LGBT tradicional cresceu até agora para o LGBTQQIP2SAA. A competição entre elas acrescenta à mistura um número ainda maior de permutações ou identidades possíveis. 

Cada subgrupo tem sua própria ideologia. Tempo precioso é gasto lutando contra aqueles considerados menos oprimidos e dizendo-lhes para verificarem o seu privilégio, à medida que a hierarquia crescente das Olimpíadas da Opressão se configura e modifica. 

As regras para este esporte são tão fluidas quanto as identidades participantes. Um dos últimos dilemas que afetam o movimento das políticas de identidade é a questão de saber se os homens em transição para mulheres merecem reconhecimento e aceitação ou se as mulheres trans não são mulheres e estariam estuprando as lésbicas...

A ideologia da política de identidade afirma que o homem branco, cidadão respeitável, está no ápice da pirâmide privilegiada, responsável pela opressão de todos os outros grupos. Seu pecado original o condena à vergonha eterna. 

Embora seja verdade que os homens heterossexuais (como grupo) tenham enfrentado menos obstáculos do que as mulheres, homens homossexuais ou minorias étnicas, não se deve esquecer que a maioria dos homens brancos heterossexuais, passados e presentes, também lutam para sobreviver de salário a salário, não estando pessoalmente envolvido na opressão de qualquer outro grupo. Enquanto a maioria dos indivíduos mais ricos do mundo são homens caucasianos, existem milhões de homens brancos que são pobres e perdedores. 
Isso parece mais sopa de letrinhas...
A ideia de brancura é, em si, um conceito ambíguo envolvendo perfil racial. P. ex., os judeus irlandeses, eslavos e asquenazes podem parecer brancos, mas sofreram mais do que seu quinhão de fomes, ocupações e genocídios ao longo dos séculos. A ideia de vincular o privilégio de um indivíduo à sua aparência é, na verdade, uma forma de racismo idealizada por intelectuais liberais (para os quais também caberia o rótulo privilegiados), que seriam supérfluos em qualquer sociedade socialista.

A lésbica de minoria étnica de classe média que vive na Europa Ocidental é mais oprimida do que a síria de aparência esbranquiçada que reside sob a ocupação do Estado Islâmico? A classe trabalhadora branca britânica é mais privilegiada do que uma mulher de classe média da mesma sociedade? 

Estereótipos baseados em raça, gênero ou qualquer outro fator apenas levam à alienação e animosidade. Como pode haver unidade entre a esquerda se formos apenas fiéis a nós mesmos e àqueles que mais nos amam? 

Alguns homens brancos que sentem que a esquerda não tem nada a oferecer decidiram jogar o jogo político da identidade em sua busca pela salvação e se inclinaram a apoiar Trump (um bilionário com o qual não têm nada em comum) ou movimentos de extrema direita, daí resultando mais alienação, animosidade e impotência, o que, por sua vez, apenas fortalece a posição do 1% indiscutivelmente privilegiado. As pessoas do mundo inteiro são mais divididas por classe do que por qualquer outro fator.
O saco dos identitários já tem mais de 70 gatos

É muito mais fácil lutar contra um grupo igual ou ligeiramente menos oprimido do que dedicar tempo e esforço para se unir a eles contra o inimigo comum  o capitalismo. 

Combater a opressão por meio de políticas de identidade é, na melhor das hipóteses, uma forma preguiçosa, perversa e fetichista da luta de classes, liderada principalmente por ativistas liberais, de classe média e atuantes no setor terciário [comércio e serviços], que entendem pouco da teoria política de esquerda. 

Na pior das hipóteses, é mais uma ferramenta usada pelos 1% mais ricos para dividir os outros 99% em 99 ou 999 grupos diferentes que estão preocupados demais em lutar por seu próprio espacinho para desafiar o status quo. 

É irônico que um dos principais doadores do falso movimento político de identidade de esquerda seja o privilegiado bilionário canadense George Soros, cujas ONG's ajudaram a orquestrar os protestos Euromaidan na Ucrânia, os quais alavancaram o surgimento de movimentos de extrema-direita e neo-nazistas (ou seja, o tipo de pessoas que acreditam na superioridade racial e não se interessam pela diversidade).

Há um equívoco cuidadosamente elaborado de que a política de identidade deriva do pensamento marxista; a frase sem sentido marxismo cultural, que tem mais a ver com a cultura liberal do que com o marxismo, é usada para vender essa linha de pensamento. Na verdade, não só a política de identidade nada tem em comum com o marxismo, o socialismo ou qualquer outra corrente de pensamento tradicional de esquerda, como se constitui num anátema para o próprio conceito.
Protestos Euromaidan alavancaram a extrema-direita
Uma lesão a um é um dano a todos foi substituída por algo como uma lesão a mim é tudo o que me importa. Nenhum país socialista, seja na prática ou apenas no nome, promoveu políticas de identidade. Nem as nações africanas e asiáticas que se libertaram da opressão colonialista nem os estados da URSS e do Bloco Oriental nem os movimentos de esquerda que surgiram em toda a América Latina no início do século 21 tiveram tempo de brincar com políticas de identidade.

A ideia de que a política de identidade é parte do pensamento tradicional de esquerda é promovida pela direita que procura demonizar movimentos de esquerda; por liberais que buscam se infiltrar, apunhalar e destruir os movimentos de esquerda; e por jovens radicais desorientados que não sabem nada sobre teoria política e não têm nem paciência nem disciplina para aprender. O último grupo busca uma emoção barata que os faça sentir como se tivessem abalado as fundações do establishment quando, na realidade, apenas o fortalecem.
A antítese da fragmentação e dispersão de forças provocadas pelos
movimentos identitários é a esperança de que todos os movimentos
anti-stablishment voltem a unir-se para confrontarem o inimigo maior.
.
A política de identidade é tipicamente um fenômeno moderno de classe média que ajuda os responsáveis a manter as massas divididas e distraídas. No Ocidente, você é livre para escolher qualquer gênero ou sexualidade, fazer a transição entre eles por capricho ou talvez criar o seu próprio, mas não é permitido questionar os fundamentos do capitalismo ou do liberalismo. A política de identidade é o novo ópio das massas e impede a resistência organizada contra o sistema. 

É chocante vermos segmentos da esquerda ocidental acreditarem que as liberdades acima mencionadas sejam um indicador do progresso e um indicador de sua superioridade cultural, o que os leva até a apoiarem sua exportação via ONG's ou por outros meios!
Nota do editor: Tomasz Pierscionek é editor do London Progressive Journal e a publicação deste seu artigo foi recomendada pelo meu bom amigo Francisco Ugarte. Quanto à inclusão do vídeo do Youtube com os principais pontos da palestra da profª Angélica Lovatto, a sugestão veio do comentarista José A. de Souza Jr.

7 comentários:

José A. de Souza Jr. disse...

Caro companheiro Celso:
Foi com imenso prazer que li seu post demolindo a ideologia pós-moderna que tanto mal tem causado à classe trabalhadora de todos os países nessa quadra da história onde o capital articulado globalmente inflige derrota atrás de derrota aos trabalhadores. Aqui no Brasil ela se manifestou efusivamente no PT e vimos no que deu. Recomendo a discussão da Profa. Angélica Lovatto sobre as idéias tortas que estruturaram o PT e que desviaram a grande oportunidade histórica da classe trabalhadora se afirmar como classe em si e para si desde os anos 80, por conta dessa adesão própria de colonizados aos modismos perniciosos do capitalismo decadente. Os principais pontos da palestra podem ser conferidos aqui: https://www.youtube.com/watch?v=qz0p-RM6xjs

celsolungaretti disse...

OK, valeu a dica, José. O vídeo foi colocado no pé do post. Abs.

Gilberto Bueno disse...

Seu texto é ótimo e muito esclarecedor!

celsolungaretti disse...

Agradeço, companheiro, mas, neste caso, fui apenas o editor. O texto é de Tomasz Pierscionek.
O que fiz foi escolher fotos e vídeos, definindo o visual do post.

Espero que você continue prestigiando nosso trabalho. Abs!

Anônimo disse...

Grato pela dica da professora Lovatto.

Marco A.

Camarada Josesk Volpe disse...

Curti o texto, camarada
Mas estranhei uma parte do texto, creio que você escreveu sem notar o erro. Você menciona que homens heterossexuais sofrem menos obstaculos que homens heterossexuais. ¿vc queria dizer homens homossexuais?

"Embora seja verdade que os homens heterossexuais (como grupo) tenham enfrentado menos obstáculos do que as mulheres, *homens heterossexuais* ou minorias étnicas (...)"

celsolungaretti disse...

Camarada Volpe,

a correção que você propôs fez sentido, então eu a efetuei no texto, grato.

Mas, o artigo não é meu, é do Tomasz Pierscionek. Eu não escrevi nada, apenas transcrevi.

Mesmo assim, eu deveria estar com a cabeça no mundo da luta quando deixei passar esse lapso (provavelmente de quem traduziu o texto). Não costumava ser assim tão distraído.

Abs,

Celso

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