David Emanuel Coelho |
Conforme diz Einstein, é necessário ver o problema por vários ângulos.
CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS – No meu artigo anterior, fiz uma breve consideração sobre o período pós-impeachment, mostrando como uma espécie de maldição recaiu sobre seus autores. Tudo não poderia ter ficado pior.
Basicamente, o impeachment foi pautado por dois axiomas: imposição de contrarreformas neoliberais e freagem da Lava Jato. Quanto ao segundo ponto, o fracasso é notório, tendo as investigações não apenas continuado, mas também se ampliado. Com relação ao primeiro, no entanto, houve uma vitória parcial.
A burguesia nacional respondeu às manifestações de 2013 impondo um programa de aprofundamento neoliberal. O objetivo era cortar gastos sociais, desregulamentar o mercado de trabalho e ampliar ganhos especulativos. Isto num quadro de crise econômica, causada pela queda de ganhos com a venda de commodities. O resultado não poderia ser outro que não uma degringola generalizada: desemprego, aumento da pobreza, queda da produção, crise fiscal, etc.
Houve também um elemento importante neste contexto, qual seja o aumento do endividamento. Na verdade, muito do endividamento já existia no período anterior a 2013, tendo sido contraído na época de isenção dos anos 2009-2012, quando, lembremos, o governo desonerou inúmeros setores da produção e facilitou o acesso ao crédito. Era o próprio Lula, ainda presidente, quem conclamava a população a comprar geladeiras, fogões e máquinas de lavar. “Não deixem de realizar o sonho de vocês”, dizia ele. O sonho, contudo, virou macabro pesadelo.
O estado de coisas piorou ainda mais com o ajuste efetuado sobre serviços e insumos fundamentais. Abandonando sua antiga política de controle de preços, Dilma liberou reajustes generalizados em inúmeros serviços públicos.
"Não deixem de realizar o sonho de vocês", dizia Lula |
Os preços da gasolina e da eletricidade, p. ex., foram reajustados na semana seguinte à sua eleição para o segundo mandato, abrindo a porteira para medidas idênticas em outras áreas. Pode-se dizer tranquilamente que Temer apenas prosseguiu, radicalizando, tal política de ajustes inaugurada por Dilma.
A paralisação dos caminhoneiros insere-se neste contexto.
Em primeiro lugar, é preciso entender quem são os caminhoneiros. Dados da Confederação Nacional dos Transportes e de pesquisadores oficiais podem ajudar a compreender este ponto.
Existem basicamente dois tipos de caminhoneiros: os autônomos e os de frota. Os primeiros possuem o próprio caminhão e trabalham por conta própria. Os segundos são funcionários de empresas.
De acordo com a CNT, os autônomos são por volta de 374 mil. O número total, porém, é maior, pois consideram-se aqui apenas os proprietários dos caminhões filiados à própria CNT, sendo que muitos caminhoneiros não são filiados e há outros tantos que trabalham em regime informal de parceria. Conforme o sociólogo Ruy Braga, os caminhoneiros autônomos perfazem em torno de 70% do contingente nacional deste setor, mensurado em cerca de 2 milhões de pessoas.
Ainda segundo os dados do CNT, cerca de 60% dos caminhoneiros autônomos possuem no máximo o ensino fundamental, idade média de 45 anos e uma renda mensal média de R$ 4 mil. Costumam fazer jornadas diárias de mais de 11 horas, cobrindo cerca de 10 mil km por mês.
Um dado interessante é a idade média dos caminhões. Há praticamente um empate entre os caminhões com idade anterior a 1995, 36%, e posterior a 2006, 35%. Este dado mostra que a frota é um misto de relíquias com veículos novos, só tendo começado realmente a se renovar a partir das isenções e incentivos à compra.
Grande causa de acidentes: caminhoneiro exausto dorme no volante |
O histórico de paralisações dos caminhoneiros também é um elemento interessante. As maiores foram em 1979, 1986, 1999, 2015 e agora. Ou sejam, coincidiram com períodos de aguda crise econômica e política. Ou seja as paralisações sempre vieram em períodos de forte mobilização dos trabalhadores.
Por fim, é importante considerar o quase monopólio do transporte rodoviário no Brasil. 66% das cargas são transportadas por caminhões.
A partir deses dados todos, podemos ter uma compreensão inicial de quem são os caminhoneiros.
A industrialização brasileira coincidiu com a era do automóvel. Outros países tiveram sua industrialização em um período nos quais dominavam trens e navios. No caso brasileiro, não apenas houve uma coincidência, como foi também o automóvel quem impulsionou nosso desenvolvimento industrial.
É muito mais barato construir uma estrada de rodagem do que uma estrada de ferro. Em 2014, de acordo com a Associação Nacional de Transporte Ferroviário, o custo médio de uma estrada de ferro era de US$ 1,5 milhão por km, enquanto uma estrada de rodagem custava em média US$ 200 mil por km. Ou seja, uma estrada de 100 km, p. ex., sairia por US$ 150 milhões se fosse de ferro e US$ 20 milhões sendo de rodagem, uma diferença e tanto!
Além disto, a rodovia proporciona uma flexibilização do sistema de transporte muito maior. A ferrovia exige a constituição de conglomerados de transporte ferroviário, compra de locomotivas, vagões e uma sofisticada rede centralizada para o controle do fluxo. Já o sistema de rodagem é bem mais simples, basta você ter um veículo e sair com ele rodando.
"É muito mais barato construir uma rodovia do que uma ferrovia" |
Daí a superioridade do sistema rodoviário do ponto de vista econômico e de simplicidade logística, motivo pelo qual ele é amplamente adotado no Brasil, um país continental, complexo e multifacetado.
Na prática, o capitalismo brasileiro organizou o setor de transportes de forma semi-anômala. Pelo fato de que basta ter um veículo para estar engajado na dinâmica do transporte, a burguesia nacional não investiu em explorar o setor por meio de empresas tradicionais, preferindo controlá-lo indiretamente, via fretamento.
Aproveitando-se do grande contingente populacional não absorvido diretamente pela indústria ou pelos serviços – em grande parte devido à baixa escolaridade, baixa oferta de empregos ou excesso de contingente –, foi possível ao capitalismo nacional recrutar milhões de pessoas, pois oferecia-lhes, como atrativo, a possibilidade de obterem um ganho superior ao auferido pelos trabalhadores com a mesma escolaridade ou condição social.
Ao mesmo tempo, ao não estabelecer uma relação trabalhista tradicional, a burguesia pode se abster de custos adicionais. Na prática, o risco do negócio fica com cada caminhoneiro, que pode ou não ser convocado a prestar o serviço, de acordo com a demanda produtiva do sistema econômico.
Aqui vem a ilusão que faz muitos enxergarem os caminhoneiros como empresários. A ilusão está no fato de eles possuírem o próprio meio de subsistência e emularem agentes econômicos burgueses. Esta ilusão pode aparecer até para os próprios caminhoneiros, fazendo com que se identifiquem mais com a classe burguesa do que com a trabalhadora.
"Conservadores e deslocados em relação aos demais trabalhadores" |
No entanto, é uma falsa consciência. Os caminhoneiros não controlam seu próprio negócio. Este é determinado pelo alto, de modo difuso, pelo verdadeiro empresariado, por meio do frete.
A atomização dos caminhoneiros favorece uma acirrada concorrência entre eles, levando-os à realização de longas jornadas e à submissão a condições de trabalho inapropriadas – que seriam difíceis de implementar em relações tradicionais de trabalho. Isto favorece a queda do valor do frete.
O caminhoneiro vive sempre pressionado pelo empresariado (de cujo frete depende para sua sobrevivência), pelos custos e pela concorrência.
Esta condição atomizada, o desenraizamento – pois estão sempre em movimento – e a ilusão de serem agentes econômicos burgueses, os tornam mais conservadores e deslocados em relação ao restante da classe trabalhadora. Por isto, normalmente, eles se levantam quando ocorre uma pressão direta sobre eles, seja como consequência de uma queda do frete ou de um aumento significativo dos custos.
GREVE OU LOCAUTE? – Tal questão, na verdade, é um falso problema. Resume-se a uma filigrana jurídica não aplicável no caso dos caminhoneiros. E por que não é aplicável? Justamente pelo caráter peculiar de organização deste setor do trabalho.
As definições de greve e locaute se aplicam ao campo das relações trabalhistas tradicionais, com o empregado estando organizado numa empresa delimitada. Os setores industriais e de serviços são amplamente organizados deste modo. Os transportes, não.
"São submetidos a uma dinâmica pulverizada de controle econômico" |
Conforme vimos acima, o setor de transportes é atomizado e semi-anômalo. O controle patronal é exercido por via indireta, via frete. Não existe uma relação patrão-empregado, a rigor, mas uma dinâmica pulverizada de controle econômico.
Na prática, o caminhoneiro está por conta própria. Mas seu sustento só é conseguido mediante a liberação de fretes pelos produtores. E nisto reside sua tragédia.
A ilusão referida de que eles operam por uma lógica empresarial, sugere o locaute. No entanto, a dinâmica social ampla e a dependência completa de um terceiro – o produtor – faz surgir a condição de greve. A rigor, deveríamos dizer que não é uma coisa, nem outra, e chamar simplesmente de paralisação.
A paralisação dos caminhoneiros surge em resposta às políticas de ajuste dos governos Dilma e Temer. Obviamente, os caminhoneiros não conseguem conceitualizar sua prática a este nível, entrando aí a análise científico-filosófica.
Pedro Parente foi colocado na Petrobrás para impor ali a lógica financista e preparar a venda definitiva da empresa. Diminuiu a produção nacional de diesel e gasolina, tornando mais de 30% das refinarias nacionais ociosas. Em troca, ampliou a importação de combustíveis, fazendo pressão sobre os preços, sobretudo em momento de desvalorização cambial. O Brasil passou a exportar petróleo barato e comprar derivados caros.
Contudo, sua ação mais contundente não foi esta. Em decisão irrealista, passou a transferir imediatamente ao consumidor a variação no preço do barril e do dólar, o que praticamente transformou o país inteiro numa gigantesca bolsa de valores, com aumentos diários.
"Transformou o país inteiro numa gigantesca bolsa de valores" |
Para os caminhoneiros foi como uma bomba atômica. Com uma matriz energética caduca, o Brasil depende profundamente do diesel para mover caminhões e ônibus. Aumentos diários, somados à queda dos fretes, pressionaram a renda dos caminhoneiros ao ponto da quebra geral.
A imprevisibilidade fez com que ficasse impossível fechar qualquer contrato, pois, ou o caminhoneiro assumiria o ônus da diferença entre o acordado e o custo final, ou simplesmente não fecharia o acordo, o que, obviamente, vai contra a existência da categoria.
Num movimento que partiu de baixo para cima, os caminhoneiros organizaram uma gigantesca e potente paralisação, levando o país à paralisia.
A pauta é fundamentalmente econômica, mas, como tal, tem uma forte componente política. Neste caso, uma pauta de confronto aos ajustes promovidos na Petrobras. Em última instância, no entanto, significa também um abalo do próprio governo e de seu regime, sustentado no financismo. Daí a paralisação ter assumido ares de insurreição, pois atacava o coração neoliberal do governo.
Contudo, isto aconteceu de forma involuntária, pois a reivindicação do setor era apenas pela diminuição do preço do diesel. Porém, uma pauta setorial acabou ganhando ares de universalidade justamente por atingir, indiretamente, o cerne da lógica do regime acumulativo imposto após 2013.
O governo, obviamente, sabia disto e sabia que não poderia abandonar sua política de ajustes. Por isto, num primeiro momento tratou de fingir-se de morto e apostar no fracasso da mobilização. Com o país já parado, foi obrigados negociar.
"Governo fingiu de morto, apostando no fracasso da mobilização" |
A mídia, desde o primeiro momento, ditou o caminho de negociação do governo. De modo algum deveria ser mudada a política de preços e ajustes. O único caminho aceitável seria a desoneração do setor.
Globo, Folha e Estadão se pautaram entre a demonização do movimento, acusações de locaute, terror pelos efeitos da paralisação e defesa intransigente da política de Pedro Parente.
No entanto, o biombo de ajustes e contrarreformas já está rachado de alto a baixo. A própria iminência de um levante popular de proporções gigantescas impôs um recuo no fôlego neoliberal da plutocracia brasileira. Certamente, os candidatos eleitorais terão de repensar o discurso que usarão e cometer menos sincericídios.
Entretanto, é importante ressaltar que não virá dos caminhoneiros uma suposta liderança rebelde. Por suas características, poderão até simpatizar com algum tipo de mobilização ampla, e este ou aquele poderá aderir. Mas o conjunto só se mobilizará por questões estritamente relacionadas à sua categoria, pois lhes falta a devida organicidade para criarem consciência política e de classe coerentes.
O que fica da paralisação deles é o espírito de luta e o dedo colocado na ferida do regime. As medidas do governo para debelar o movimento poderão levar a consequências ainda mais problemáticas no futuro, podendo servir de combustível para novas agitações no país. O cheiro de diesel queimado ainda será sentido por muito tempo.
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