Foi lá pelos meus 14 ou 15 anos que fiquei sabendo o quanto a Justiça de uma sociedade de classes pode ser tendenciosa quando tem em mãos o destino de quem luta ou lutou contra a dominação burguesa: a leitura de A tragédia de Sacco e Vanzetti, de Howard Fast, pulverizou o que eu absorvera acriticamente de um sem-número de filmes e séries estadunidenses, fazendo-me pela primeira vez perceber que há um verdadeiro abismo entre o espírito e a prática da Justiça.
Então, mais de meio século depois, eu já deveria estar vacinado contra absurdos como o que li na sentença do juiz titular da Corregedoria Judicial da Penitenciária Federal do Rio Grande do norte – mas, injustiças tão clamorosas ainda me deixam profundamente indignado!
Trata-se da resposta a um requerimento de Maurício Hernandez Norambuena, no sentido de que a Justiça brasileira:
- ou entabule negociações com o Chile para o cumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal, que já em 2003 autorizou a extradição para sua pátria (até agora inviabilizada pela obstinação chilena em não reduzir a pena que Norambuena terá de cumprir por lá, adequando-a ao máximo de 30 anos que a Justiça brasileira exige nesses casos, como se, com os 89 anos que terá em 2047, ele ainda pudesse conservar alguma periculosidade... );
- ou lhe conceda a progressão de regime carcerário a que faz jus após já ter cumprido 14 anos de prisão no Brasil, quase sempre submetido ao tratamento cruel e desumano do famigerado Regime Disciplinar Diferenciado, forma contemporânea de tortura e de aniquilação lenta do prisioneiro que é praticada em vários estabelecimentos penais, mesmo quando eles não o assumem explicitamente.
O meritíssimo reconhece que "o referido interno atingiu o requisito temporal para progredir de regime no dia 7 de janeiro de 2007, assim não restando dúvidas acerca do preenchimento deste requisito".
Em seguida, coloca uma objeção tão bizarra que faz lembrar os pesadelos do Kafka ou a frase de Machado de Assis (em O alienista) sobre preso por ter cão, preso por não ter cão:
"...o Superior Tribunal de Justiça tem decidido que, quando se trata de preso recolhido a presídio federal, é paradoxal (!) a concessão de progressão de regime ou mesmo livramento condicional, pois, se ele faz jus a esses benefícios, é porque não deveria estar no sistema penitenciário federal (!!!)".
Ou seja, o Estado falhou tanto ao não conceder-lhe os benefícios a que já fazia jus, quanto ao não transferi-lo para um estabelecimento penal menos dantesco. E estas falhas servem como pretexto para que o julgador as continue cometendo. Não estará ele infringindo o princípio de que ninguém pode alegar a própria torpeza em seu benefício?!
Na mesma linha, o juiz federal admite que, segundo a Lei nº 11.671/2008, "a inclusão e a renovação do período de permanência do apenado em estabelecimento federal de segurança máxima é medida de caráter excepcional e temporária", exatamente por causa dos terríveis danos físicos e psicológicos que os rigores do confinamento extremado acarretam aos prisioneiros.
Na mesma linha, o juiz federal admite que, segundo a Lei nº 11.671/2008, "a inclusão e a renovação do período de permanência do apenado em estabelecimento federal de segurança máxima é medida de caráter excepcional e temporária", exatamente por causa dos terríveis danos físicos e psicológicos que os rigores do confinamento extremado acarretam aos prisioneiros.
Mesmo assim, o meritíssimo vale-se de brechas legais que efetivamente existem, mas são autoritárias e desumanas, acintes à nossa condição de civilizados, para concluir que "que permanecem hígidos os motivos que ensejaram a transferência do interessado para o presídio de segurança máxima" como "melhor forma de se manter a ordem pública, o interesse da coletividade e a segurança da população".
Por quê, já que o comportamento de Norambuena no cárcere é reconhecido pelas próprias autoridades como impecável? Por algo absolutamente não demonstrado:
"Cabe destacar que o interessado é um dos líderes do Comando Vermelho, facção criminosa do Estado do Rio de Janeiro, sendo o seu retorno àquele Estado, consoante bem ressaltado, é um facilitador da comunicação com a referida organização criminosa".
Ora, como é público e notório que Norambuena não tinha vínculo nenhum com o Comando Vermelho antes de ser preso, logo suspeitei tratar-se de fofoca de prisão, aquelas maledicências fartamente utilizadas para desacreditar os presos malquistos pelas autoridades.
Consultei o advogado de Norambuena, o abnegado Antônio Fernando Moreira. Na mosca! Eis a verdade sobre o pretexto utilizado para subtrair direitos de um condenado nestes tristes trópicos:
"Em 2015 Mauricio reencontrou alguns destes presos de SP no presídio federal de Rondônia, na selva amazônica. Pronto. A inteligencia alegou 'proximidade' de Mauricio com presos do CV – lógico, nestes presídios federais há assumida divisão de alas por facções criminosas. Afirmou que ele estava 'próximo' de Francisco, vulgo Piauí – era o sujeito da cela ao lado. Foi dito que ele 'tentou contato' – como? onde? para quê? – com Marcola e outro preso de codinome Vida Loka. Consegui descobrir que este cidadão estava a algumas celas de distancia".
Nenhum verdadeiro defensor dos direitos humanos pode permanecer indiferente a tantos abusos e injustiças! A perseguição judicial a Norambuena e a tortura sem fim a que o submetem têm de acabar! Não foi para chegarmos a isso que tantos entregaram a vida e tantos sofremos as mais dilacerantes torturas nos anos de chumbo!
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O professor Carlos Lungarzo, que há quatro décadas defende o respeito aos direitos humanos em nosso continente e teve participação destacada na luta contra a extradição do escritor italiano Cesare Battisti, já apontou várias incoerências e ilegalidades na sentença recebida por Norambuena e nas condições carcerárias que lhe estão sendo impostas.
Questionou, primeiramente, sua condenação a 30 anos de prisão, já que o artigo 148 do Código Penal brasileiro estabelece para tais casos a pena máxima de cinco anos. "Isto inclui até o caso de sequestro de crianças e doentes, e casos em que o sequestrado é ferido durante sua captura", explicou, destacando a inexistência de agravantes que tornassem pelo menos compreensível o rigor extremado da corte:
"Apesar da animosidade da mídia, dos inimigos da esquerda brasileira e da elite empresarial, nunca foi dito que o magnata tivesse recebido coação física, salvo a de estar encerrado quase dois meses num pequeno quarto. Quando foi liberado, deu uma breve entrevista à imprensa, e seu estado físico, pelo menos de longe, parecia normal. Em sua entrevista, o mais substantivo que disse é que descobriu que os raptores não eram brasileiros, porque ninguém falou nunca do Corinthians".
Para Lungarzo, a condenação não só foi "ilegal e desproporcional, como cruel e desumana, pois ela transcorre no RDD, um "método indireto de tortura (...), um método insano utilizado especialmente nas teocracias orientais, mas também em estados maniqueístas como os EUA e a Itália".
Foto recente da penitenciária de Mossoró... |
Ele também assinala que o RDD foi introduzido pela Lei 10.792, de 01/12/2003, inexistente, portanto, no momento do crime.
Além disto, acrescento eu, o RDD nunca passou de uma variante mais rigorosa do confinamento nas chamadas celas solitárias. Deveria servir apenas para a punição do prisioneiro que, conforme está especificado no artigo 52 de da Lei 10.792, incidisse em "falta grave" que ocasionasse a "subversão da ordem ou disciplina internas".
Mais: o texto legal diz que o RDD tem a "duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada".
Mais: o texto legal diz que o RDD tem a "duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada".
...uma das mais draconianas do País. |
Lungarzo não tem dúvidas de que Norambuena está sendo retaliado pelas autoridades brasileiras com "uma vingança extrema", até porque "nenhum chefe do narcotráfico sofreu RDD por tempo tão longo".
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