terça-feira, 8 de novembro de 2016

O EFEITO LIQUIDIFICADOR IDEOLÓGICO

"No mais, mesmo, da mesmice, 
sempre vem a novidade"
(Guimarães Rosa)
Substâncias várias, quando unidas e liquidificadas, se transformam numa unidade homogênea e idêntica. 

As teorias político-sociais atingiram agora um ponto de identidade a que chamamos de efeito liquidificador ideológico. O mundo todo vive sob a égide de um modelo social decadente, que busca inutilmente no desenvolvimento de sua própria lógica, causa do declínio, o antídoto de tal decadência. A crise, portanto, expõe a identidade ideológica de pensares políticos aparentemente divergentes.  

Os políticos de direita, de centro e de esquerda tentam convencer o eleitorado de que suas propostas são as mais eficientes para o desenvolvimento econômico, como forma única de promoção do bem-estar social; e isso mediante ações que supostamente seriam sustentáveis em termos ecológicos.

Com os poucos defensores da crítica da economia política se constituindo em dignas exceções, quase ninguém ousa questionar o modelo desenvolvimentista mercantil; então, todos agem como servos inconscientes da negatividade capitalista (embora haja uma cúpula consciente, manipuladora), tudo dentro da obediência cega ao insano fetichismo da mercadoria. 

A maioria segue tal procissão de alegorias do terror, conduzida pelos políticos prepostos do capitalismo, pelos partidos políticos, pelas instituições do Estado, pelas associações de classe, por movimentos sociais (como o MST, cuja reforma agrária serve para transformar os agricultores em proprietários de terra e de mercadorias) e até pelos sindicatos, que pugnam por mais empregos e melhores salários, ou seja, por mais capitalismo, ainda que se pretendam anticapitalistas. 

Por seu turno, as associações de moradores de bairros, as instituições religiosas, os desportistas e até mesmo as academias (que deveriam ter uma abordagem teórica crítica) seguem a mesma trilha de clamar por reformas sem questionarem a gênese do problema. Todos, enfim, se comportam como zumbis teleguiados por uma força que lhes é estranha, num estado de esquizofrenia social.   

Antes havia, de um lado, a falsa dicotomia entre os capitalistas (cujo espectro abrigava ditadores militares, burgueses neoliberais, nazistas, etc.) e, do outro lado, a chamada esquerda, pretensamente anticapitalista, integrada por partidos marxistas de vários matizes, socialistas, trabalhistas, ecologistas, sociais democratas, etc. [Em toda a volumosa obra do marxista Lênin não se encontra nenhuma elaboração mais aprofundada da crítica à forma-valor, ponto exponencial da teoria marxiana.]

Fora do espectro político, estavam apenas os anarquistas, cuja crítica focava no Estado e na Igreja; embora sem maior profundidade teórica e sem uma formulação crítica mais consistente, intuíam a negatividade dos construtos jurídicos institucionais estatais (sem os quais não existe o capitalismo) e organizações religiosas. 
Agora, não. A suposta dicotomia tende a se esvair na inconsistência de sua própria identidade de base (o sistema produtor de mercadorias) pelo liquidificador ideológico, evidenciando quão periféricas, cosméticas e superficiais são as diferenças desde que se consolidou o one world da relação social sob a forma-valor, tida equivocadamente como dado ontológico, natural, e até ganho civilizador da existência humana. 

O desaparecimento quase total das economias capitalistas de Estado (modelos marxistas tradicionais) trouxe à tona aquilo que antes poucos podiam perceber: todos os Estados (capitalistas liberais e marxistas tradicionais) sempre funcionaram sob a égide da extração de mais-valia, única forma de reprodução do valor e, assim, invariavelmente se igualaram e se igualam na defesa do desenvolvimento econômico, sua essência constitutiva.

Mas justamente no momento da aparente vitória absoluta do capitalismo, ele atinge o seu ponto de inflexão e decadência, atestado pela:
a) queda da reprodução do valor que se processa de modo insuficiente para a irrigação do fluxo monetário internacional, fonte causadora do aprofundamento do apartheid social inerente a sua própria forma; 
b) falência do Estado, incumbido de serviços públicos essenciais, mas que se ocupa prioritariamente da regulamentação coercitiva da relação social mercantil e dos seus cânones jurídico-institucionais; 
c) aquecimento do Planeta, que causa mudanças geológicas e meteorológicas genocidas. 
O aumento do nível de produtividade das mercadorias provoca o aumento localizado da extração da mais-valia relativa (concentração de riqueza abstrata) e a consequente diminuição global da massa de mais-valia nos setores primário e secundário da produção de mercadorias, exigido pela corrida da concorrência de mercado, tendo atingido um estágio em que:
a) tornou-se proibitiva a produção de mercadorias pelos médios e pequenos produtores industriais e agrícolas, mesmo na chamada economia de subsistência;

b) no comércio se observa o mesmo fenômeno, pois somente as grandes cadeias de lojas conseguem a racionalização dos custos operacionais e a barganha vantajosa de preços para compra e venda de mercadorias (já não se consegue sobreviver como dono de uma única farmácia), concentrando cada vez mais o capital nas mãos de enormes complexos logísticos que, mesmo assim, veem cada vez mais reduzidos os seus espaços de crescimentos mercantis mundo afora.
Embora tenham surgido setores novos no mercado de trabalho (como é o caso da cibernética), eles não são suficientes para a absorção da grande massa de trabalhadores tornados supérfluos por este mesmo aumento do nível de produtividade, decorrente da introdução da microeletrônica na produção de mercadorias e da racionalização de procedimentos provocados pelo próprio uso da computação na área de serviços e no processo produtivo. 
Assim, a vida mercantil encontrou o seu ponto de saturação e de inflexão existencial iniciando uma curva descendente. 

Entretanto, como os entes sociais, são todos dependentes da intensidade da velocidade da famigerada roda mercantil como modo de manutenção do cambaleante (des)equilíbrio social sob sua lógica, inclusive o sistema educacional em seus vários níveis e a própria mídia de comunicação (igualmente inserida na lógica mercantil, da qual tira o seu sustento existencial econômico). 

A totalidade deles, indistintamente, defende de modo ferrenho o desenvolvimento econômico como apanágio mor do bem-estar social, quase ninguém se dispondo a discutir, ou mesmo admitir, a possibilidade de introdução de outro modo de relação social fora da lógica mercantil. 

Chegamos, assim, ao efeito liquidificador ideológico: todos convergem para um pensar uniforme, conservador, acomodado, temeroso, rendido, suicida e genocida, tentando convencer a si próprio e aos outros de que o desenvolvimento econômico, embora já agora impossível, seja a única saída para a crise que se aprofunda mundo afora. 

Qualquer pessoa que tente criticar a lógica mercantil, seus valores e sua prática, é tida como visionária ou desconectada da realidade, talvez até um perigoso inimigo benéfico caráter civilizador do benfazejo desenvolvimento econômico

Entretanto, tal liquidificador social tem defeitos irreparáveis, cabendo-nos, portanto, a sua substituição por outro modelo, verdadeiramente emancipador. 

.Por Dalton Rosado

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