quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A HEROÍNA DE UM BRASIL EM QUE AS RAFAELAS SILVAS SÃO LOUVÁVEIS EXCEÇÕES

“Se você não cuidar, os jornais farão você 
odiar as pessoas que estão sendo 
oprimidas e amar as pessoas 
que as estão oprimindo”
(Malcolm X)
O esporte e as artes em geral são espaços nos quais o talento pessoal prevalece sobre a prepotência dos apaniguados do poder econômico e político. Não que deixem de ser afetados por estes dois últimos fenômenos sociais negativos, na medida em que se transformaram em mercadorias, mas é que ninguém pode substituir pessoalmente, por indicação e favorecimento, a capacidade atlética. 

Isto faz com que uma menina pobre e negra da favela, sem maiores esperanças de ser reconhecida socialmente, se transforme em orgulho nacional. O Brasil inteiro se emocionou com a conquista da medalha de ouro de Rafaela Silva, nosso único troféu dourado até o momento em que escrevo este artigo. 

Confesso que, como muitos brasileiros, eu me emocionei, porque ali estava a afirmação da possibilidade de superação da miséria quando surgem oportunidades mínimas de sobrepujar a segregação social patrocinada por um sistema infame que marginaliza e empurra para o campo da criminalidade abjeta os grandes contingentes populacionais. 

O Brasil é o país do mundo que mais utilizou a mão escrava negra como força de trabalho e o penúltimo a abolir oficialmente a escravidão negra que facultava a possibilidade de se ser dono de um ser humano. A percentagem da população negra no Brasil é de 54%, mas convivemos com a raça negra de modo segregacionista. A relação desproporcional entre tais 54% e a ocupação por essa etnia de cargos importantes na estrutura social do nosso país bem demonstram a nossa cisão social racial. 
Hoje, felizmente, é assim, mas houve um tempo...

Segregação que tem íntima ligação com a relação social patrocinada pela forma-valor desde os seus primórdios. Foi sob a alegação de que o índio não se submetia às exigências do trabalho escravo (qualificavam-no de preguiçoso) que trouxeram os negros africanos.

Vieram nos abomináveis navios negreiros, que  tamanha indignação causaram em Castro Alves ("Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura... se é verdade / Tanto horror perante os céus?!") para servirem como força de trabalho da colonização feudal, pré-capitalista e capitalista emergente no Brasil e nas Américas. 

O valor é ocidental, branco e masculino (Roswitha Scholz) e se constitui numa forma de relação social que tem como objeto teleológico a acumulação de dinheiro e mercadorias, e como resultante a segregação social. 

Nada foi mais oportuno para o desenvolvimento de uma civilização segregacionista do que a escravização direta do negro como máquina de trabalho e, posteriormente, pela escravização indireta desse mesmo negro libertado via salário (trabalho abstrato), mais apropriada à falaciosa razão iluminista que deu suporte filosófico à lógica mercantil capitalista em substituição à truculenta escravização direta dos servos na Europa, de negros e índios nas Américas. 

Foi com a escravização direta e indireta, que portugueses, espanhóis, ingleses, irlandeses, franceses e holandeses chegaram às Américas, à Ásia, à Oceania, e à África para colonizar os autóctones segundo os seus conceitos civilizatórios.
...em que era assim!
O extermínio dos peles-vermelhas e a intolerante escravização negra nos Estados Unidos por ingleses e irlandeses; a carnificina indígena e escravização negra da América espanhola e portuguesa com a apropriação do ouro e da prata; o abuso sexual disfarçado por uma poligamia hipocritamente consentida; a guerra dos bôeres na África do Sul, entre holandeses e ingleses pela imposição do apartheid; o domínio inglês na Índia e demais países asiáticos; e a exclusão dos aborígenes australianos,  entre outros exemplos históricos, são marcos de uma civilização que nega o mais elementar conceito humanista de civilidade.

Em seguida à colonização veio o início do desenvolvimento da era capitalista, quando o mercantilismo transcontinental fez o fausto europeu e americano do norte com as revoluções industriais. Tudo se fabricou; vendeu-se; comprou-se (matérias primas) e financiou-se para o chamado 3º mundo dentro da lógica do lucro e da usura. 

Na era industrial se impôs o êxodo rural e com ele a formação dos guetos urbanos; vieram as crises cíclicas e a 1ª e a 2ª guerras mundiais, com o genocídio de 70 milhões de pessoas. 

Agora, presenciamos o deslocamento da produção para países populosos e subdesenvolvidos em busca de mão-de-obra barata com o uso da tecnologia que representa um novo ciclo mercantil. Tal fenômeno, denominado de globalização, representa o último suspiro do capitalismo moribundo, e provoca a exclusão crescente de grandes contingentes humanos do processo de produção e da vida social – os supérfluos do capitalismo.  

A Rafaela Silva é apenas uma Silva, mulher e negra, que se salvou a si mesma e driblou o caminho comum aos seus irmãos de raça e infortúnios sociais, proporcionando-nos a emoção de uma solitária medalha de ouro. Mas, quantos iguais a ela estão descrentes na sociedade que os oprime, sem qualquer perspectiva de ajuda e não possuindo a capacidade de superação por ela demonstrada? 

Assim como devemos a ela a emoção do solitário brilho dourado de sua medalha, somos responsáveis pelos muitos outros que nos ameaçam com o brilho do cano do revolver num assalto à mão armada. 

[Estou longe de fazer a apologia do crime, mas, pelo contrário, defendo a superação de suas causas originais. Os criminosos têm de ser apenados, mas, quando grandes contingentes sociais se criminalizam, é o sistema indutor dessa condição que deve, também, ser condenado, sob pena de hipócrita e cômoda transferência de responsabilidades.]

Autor: Dalton Rosado
Obrigado Rafaela, pela sua conquista cheia de significados e alertas sobre as nossas responsabilidades sociais, na medida em que temos uma estrutura social altamente concentradora de riqueza e com a qualidade institucional política como a que temos (a vaia ao Presidente Temerário na abertura dos Jogos Olímpicos bem demonstra o repúdio da sociedade brasileira ao seu estamento político). 

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