"Ao vencedor, as batatas!"
(frase irônica de Quincas Borba,
personagem de Machado de Assis)
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As modernas sociedades mercantis sacramentaram o conceito de vencer na vida, que consiste em subir na escala social. Os vencedores são aqueles que ganham dinheiro e ficam ricos; então, como a grande maioria da população (cerca de 80%) não consegue ficar rica, temos 80% de perdedores.
Nada mais injusto do que se qualificar uma pessoa pelo seu poder aquisitivo e não pelas suas qualidades humanas e contribuição social! Mormente quando é a própria sociedade quem cria um mecanismo básico de mediação social segregacionista, fundado na extração de mais-valia, que viabiliza a acumulação do capital em detrimento de que o produz e que é causa da existência de uma sociedade de perdedores.
O maior literato brasileiro, Machado de Assis, há mais de um século colocou na boca de um personagem sarcástico, Quincas Borba, a afirmação de que, numa disputa fratricida pelo alimento vital, aos vencedores caberiam batatas e aos perdedores, ódio ou compaixão – além da fome, é claro! A fina ironia machadiana contestava, assim, a tese darwiniana da seleção das espécies aplicada ao humanismo.
Mas, quem são eles e o que é ser perdedor? O critério de aferição a partir do poder aquisitivo e da renda é a expressão mais bem acabada de uma sociedade que elege pressupostos sociais equivocados como válidos, decorrendo daí a inversão dos melhores conceitos do que seja virtude. Ou seja, a construção da negatividade social passa a ser vista como algo virtuoso.
O certo não é mirar-se nos de cima, é lutar pela igualdade! |
O que dizer daquele que acorda pela madrugada e pega um trem lotado, depois mais dois ônibus igualmente abarrotados, e que após quase duas horas de viagem chega ao trabalho (isto quando está empregado, pois desempregado é ainda pior), para uma jornada de oito horas de dura labuta, finda as quais refaz o itinerário no sentido inverso, passando pelas mesmíssimas agruras, para ganhar um salário pouco maior que o mínimo de R$ 880, a paga que recebe por produzir a riqueza do Brasil? Será ele um perdedor? Ou um herói?
Acaso podem ser considerados vencedores e merecedores do respeito social aqueles que estabelecem conluios com seus apaniguados para a prática da corrupção? E que, quando aprisionados, correm a delatar seus iguais, para escaparem pela porta do fundo das (ou atenuarem as) consequências dos seus atos? Fruto de um sistema político no qual impera o poder econômico, eles amiúde amargam um certo tempo de ostracismo e logo recuperam seu status de privilegiados, chegando a cometer os mesmíssimos delitos adiante...
Acaso os vencedores, aí incluídos bicheiros, especuladores monopolistas financeiros e industriais, traficantes, políticos e empreiteiros corruptos, etc., merecem a reverência social que normalmente lhes é concedida por terem renda e patrimônio acima da média dos perdedores (apesar de a riqueza que embasa tal valorização ter sido produzida pelos últimos e indevidamente apropriada pelos primeiros)?
Vale a pena tornar-se um vencedor ao preço da desumanização? |
Acaso os manipuladores do capital e seus submissos capitães do mato, sempre prontos a punir os escravos da modernidade que venham a se rebelar de alguma forma contra a opressão, devem ser admirados e imitados?
Acaso um povo que tem renda média anual de R$ 2.117 (dado do IBGE, 2015), que reflete uma generalização e disseminação da pobreza, pode ser considerado culpado por tudo isso e, ainda por cima, taxado de perdedor?
Costumamos a admirar o falso brilho da prosperidade expresso no brilho real das coisas belas que o dinheiro produz, e esta é a forma sublinear pela qual os perdedores inculcamos nas nossas mentes a culpa pela própria miséria. Mas, tal admiração a nos imposta é totalmente equivocada. Se não, vejamos:
– o esplendor das luzes de neon não ilumina os becos escuros onde dormem os meninos de rua e os velhos abandonados;
– os carros luxuosos e com mil quinquilharias modernosas não encobre a irracionalidade da paralisia do trânsito que faz com que o congestionamento nas ruas torne o tráfego mais lento do que as carruagens do século XIX, além de emitirem na atmosfera o gás carbônico que produz o aquecimento do planeta graças ao efeito estufa (prisão planetária dos raios solares);
Raridade: uma exortação religiosa que não trai Cristo. |
– o conforto e elegância iluminada dos bairros grã-finos ofuscam a imensidão das ruelas mal iluminadas das favelas;
– a alegria inata ao povo brasileiro, que contrasta com sua miséria (será alegre o dia-a-dia entre uma bala perdida e outra achada na favela?) e encanta turistas entediados em busca de prazer, não torna a miséria algo positivo; e por aí vai.
Ocorreu-me o paralelo com a visão crítica dos homens novos, imortalizados no herói raznochintsy (1) do livro Memórias do subsolo, de Dostoievski; embriões dos revolucionários bolcheviques de 1917, eles eram os invisíveis perdedores intelectuais na São Petersburgo que se industrializava com o capital estrangeiro na Rússia da metade do século XIX.
Tinham extrema ojeriza pelo Projeto Urbanístico Nevski, em função de sua pretensão de brilho modernoso à moda de Paris, com o qual se queria encobrir a miséria e o atraso reinante na periferia da cidade e em todo o país, patrocinado pela monarquia czarista. E estavam certos, embora isto possa hoje parecer até uma esquisitice: é que os perdedores imitam mesmo os vencedores, querendo desfrutar seus privilégios, imbuídos, no dizer de Marx, de uma falsa consciência da realidade em que vivem. Isto é o que tornava o tal Projet Nevski tão detestável para os raznochintsy.
Lance Armstrong: destruído! |
Com um pouco de sorte, os perdedores acabam finalmente percebendo que a busca da igualdade na diversidade é o melhor caminho a ser seguido. Mas, por enquanto, são raros o que atingem tal estágio de discernimento.
É evidente que este artigo não terá o condão de mudar o conceito de vencedores e perdedores, pois, ainda que consideremos como corretos os questionamentos aqui levantados, será a regra do você vale quanto você tem que continuará prevalecendo. Afinal, trata-se de um critério internalizado nas nossas mentes pelas sociedades mercantis ao longo de séculos.
Apesar disto, quero fazer a meu solitário e solidário louvor aos perdedores contumazes nas batalhas de uma vida mal vivida, conferindo-lhes uma medalha de ouro social, ainda que eu não tenha nenhuma legitimidade nem méritos para incumbir-me de tal outorga; mesmo assim faço-o, por ter certeza de que os seus sofridos e oprimidos méritos existem. (por Dalton Rosado)
(1) Os raznochintsy, que se pretendiam representantes do homem novo, eram uma nova geração de cidadãos russos intelectuais que não provinham das classes nobres. Tal geração começou a surgir na década de 1860, durante o reinado de Alexandre II, período em que houve transformações radicais na cultura russa, como a libertação dos servos. Os homens novos questionavam as instituições, as convenções sociais e, na década de 1870, realizavam manifestações públicas, algo até então desconhecido na Rússia autocrática. [Observação do editor: não confundir com a acepção dada ao homem novo pelos contestadores de 1968, que o viam como um ideal de perfeição a ser atingido, o ser humano solidário e pleno que uma sociedade livre engendraria.]
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