terça-feira, 5 de julho de 2016

A CORRUPÇÃO DO ESTADO É SISTÊMICA, ENTÃO A LAVA-JATO NÃO TERÁ FORÇA PARA ALCANÇAR TODOS OS LOBOS DA ALCATÉIA.

Por Dalton Rosado
"Eu não aceito que a ética do mercado, que
é profundamente maldosa, perversa; 
ética da venda, do lucro, seja 
que satisfaz o ser humano." 
(Paulo Freire, educador popular) 
Quem está no poder, qualquer que seja ele (econômico, político administrativo e legislativo, judiciário, corporativo, etc.), age de acordo com as suas regras de manutenção: o detentor do poder se torna escravo do paradigma que ali o entronizou, e quem quer que contrarie as suas regras vai sofrer as consequências inerentes a essa contraposição. 

Trata-se de uma regra sociológica inerente à natureza dos atos. Essa é a primeira e grande dificuldade que os indivíduos sociais, submetidos às sociedades mercantis – forma de relação social segregacionista que ora se encontra num processo de declínio existencial que acentua tal segregação –, encontram para mudar o jogo, a par da inconsciência sobre a relação da própria vida mercantil com a natureza do poder. 

Os detentores do poder econômico e político usam-no obedientemente para assim se manterem, e seus súditos, temerosos, obedecem-no caninamente, pois viver na contramão da corrente mercantil é se submeter à perseguição; ser desconsiderado, se não ridicularizado. O poder é criminoso. 

Aqui queremos nos referir a um tipo peculiar de crime consubstanciado nos silenciosos ou explícitos complôs ou consensos consistentes, no sentido da manutenção de um sistema que nasce e vive de uma corrupção original tacitamente aceita como válida, e resultado dos atos destinados à sua obtenção, como se fosse algo saudável e elogiável: o lucro.  

E o que é o lucro?

Na linguagem econômica, o lucro é a obtenção de um ganho pecuniário, ou seja, de um ganho de valor. Dentro da lógica econômica, é algo absolutamente salutar e indispensável ao funcionamento de toda a vida mercantil, sem o qual ela não existiria. A vida mercantil, por seu turno, se traduz num modo de relação social onde os objetos necessários à satisfação do consumo humano são transformados em mercadorias, adquirindo dupla existência:
  • a) uma concreta, expressa no valor de uso;
  • b) e outra abstrata, expressa no valor de troca. 
O valor de troca, expressão da forma-valor, é o móvel da relação social mercantil mediada pelo dinheiro, símbolo do valor, mercadoria especial, a única que não tem valor de uso, mas que é capaz de ser trocada por todas as outras que servem à satisfação das necessidades humanas. 

Admite-se, portanto, maliciosa e equivocadamente, que a forma de relação social mercantil é a única capaz de viabilizar a satisfação social de consumo por meio das trocas de mercadorias, móvel da produção destas e de sua existência mercadológica. Assim, o lucro tem sido aceito como elemento virtuoso no universo da vida social, sem maiores questionamentos.

Na verdade, o lucro advém da extração da mais-valia (Marx), e é uma categoria capitalista que nasce conjuntamente com as demais categorias do universo mercantil, relação social sob a forma-valor que tem no trabalho abstrato a sua substância primária. 

A extração de mais-valia, como sabemos, é a apropriação (indébita) do tempo de trabalho abstrato pelo capital (privado ou estatal), como única forma de acumulação e reprodução do valor. Ou seja, o lucro existe sempre a partir do roubo do valor de quem o produziu (o trabalho abstrato). O lucro é um roubo e, portanto, intrinsecamente injusto, embora legal e aceito como virtuoso e até elogiável...

Assim, uma sociedade assentada no mecanismo mercantil de relação social que nasce de uma apropriação indébita como fonte primária de sua existência, traz, em si, a marca de uma negatividade ontológica, de onde deriva deformidades sociais (materiais e morais) capazes de inviabilizar a vida sob sua égide. 

É o que estamos a presenciar agora na fase do limite interno absoluto da capacidade de acumulação e reprodução do valor, quando o trabalho abstrato se tornou marginal na produção de mercadorias e o mercado já não é a instância capaz de proporcionar o historicamente precário e segregacionista equilíbrio capitalista.

O universo das relações sociais institucionais, corporativas e privadas, obedece a esta lógica subtrativa de valor (riqueza abstrata) interpessoal e feita por meio de coisas (as mercadorias) que se estabelecem a partir de determinadas regras de comportamentos que alimentam as mazelas humanas em detrimento de princípios morais virtuosos que deveriam ser estimulados – tais como companheirismo, afetividade, fidelidade ao senso de justiça,  solidariedade – franquia social de riqueza material, generosidade, etc. –, somente possíveis se vivêssemos numa sociedade mediada por critérios de partilha e trocas inter-regionais não quantificadas e organizada horizontalmente, sem a existência de um poder como o que nos é imposto.

Ao contrário, vivemos, hoje, sob a égide de uma inter-relação social que estimula:
  • o individualismo;
  • a aceitação indiferente da injustiça como ato banal; e 
  • o egoísmo voltado para a acumulação de riqueza abstrata como fonte de proteção e respeitabilidade, pois somente se respeita quem a tem e somente o dinheiro pode resolver situações de consumo indispensáveis como comer, morar, cuidar da saúde, etc. 
Raramente surgem atitudes denunciadoras desse estado de coisas, generalizado tanto na vida privada como na vida institucional, tão evidentes quanto as trazida à baila no curso da Operação Lava-Jato

Esta utiliza o instrumento de coerção da delação premiada, oferecendo condições atenuadas de cumprimento da pena (em suas mansões ou apartamentos de luxo) aos bandidos travestidos de autoridades que denunciem indiscriminadamente os seus asseclas, expondo as vísceras das instituições do estado e desmascarando os membros dos poderes legislativo e executivo. 

Tal operação, contudo, conspira contra a lógica do sistema, na medida em que, querendo ou não, põe a nu o modus faciendi mercantil público e privado e, assim, tende a apenas sacrificar alguns lobos da alcateia, liberando os demais (e isto se as instâncias superiores não reduzirem as penas) e oportunizando um simulacro de isonomia social e processual penal, de modo a que a verdadeira corrupção inata à ordem sistêmica (o lucro) possa continuar prevalecendo, ainda que esteja nos estertores em função de suas contradições internas. 

O Poder Judiciário, quando procura punir a corrupção, esbarra na força da corrupção sistêmica protegida e regulamentada pelo Estado que sustenta... o próprio Poder Judiciário! É ingenuidade se pensar na isenção dos Poderes do Estado como se a República estivesse acima dos interesses mercantis subtrativos a que serve.  

O sistema mercantil exala mau cheiro por todos os poros.

2 comentários:

SF disse...

Dalton,
Sua citação de Paulo Freire é muito bem colocada.
Lembro-me que tentando acompanhar, entre um cochilo e outro, as frases quilométricas de seu texto "A Pedagogia do Oprimido" ficou a clara compreensão de que cabe ao oprimido "premido" (!) pela sua dor a mudança do sistema que o oprime e que o opressor nada fará para que haja a mudança real.
Também faz a crítica do oprimido como sujeito e protagonista da sua opressão por internalizar os valores do opressor.
E mostra uma saída que é a não colaboração com o inimigo (também o internalizado).

Gosto muito desse tipo de abordagem que foge da fórmula facista de apontar o inimigo como algo ou alguém externo, cuja eliminação proporcionará a quimérica libertação.

Na minha tosquice, vejo que o opressor de agora (o capitalista) está extremamente fragilizado e ele cairia facilmente se não estivesse entranhado na psique cada oprimido.

A esperança são os jovens, que açodados pelo desemprego e a falta de perspectivas talvez busquem relações humanas baseadas na ética e não na troca.

Nesse sentido, e vendo o avanço da ciência e tecnologia, talvez haja motivo para acreditar que a corrupção (derivada e original) do capitalismo tenha fim.

Não de maneira abrupta, mas por absoluta obsolência.

E nessa nova sociedade não-mercantil e de alto nível científico e tecnológico ainda parece utópico demais prescindir do arbitrio.

Veja-se um semáforo. Esse é um jogo cooperativo, de informação simétrica e ganho ótimo.

Mas vc verá alguns desrespeitarem as regras.
Como detê-los senão pela sanção?

Pode ser a mais suave delas, mas é necessário violentar o arbitrio individual para o benefício comum. E isso é uma boa arbitrariedade, vc não acha?
Qual ente proporcionará isso?
Seria algo como o estado e seu fundamento: a violência?

Veja-se que, mesmo que haja frutas no pomar e o agricultor não cobre nada de quem queira alimentar-se com elas, ele também não quererá que alguém as colha verdes, que atirem pedras para colhê-las ou que as queiram ensacar, e levar toda a produção de uma vez, em prejuízo de outros que igualmente precisem.

São necessárias regras, boa escrituração, eficiente contabilidade, firmeza na imposição das regras e na auditoria das escriturações.

Há como se fazer respeitar as regras sem a vigilâncias dos agentes e a penalização dos desvios?

E se no hipotético pomar todas a frutas forem colhidas e quem cultivou veja-se sem nenhuma para comer?
E se todos acharem que é melhor só colher o que outros plantaram sem o cuidado de também ele cultivarem?

Imagino que uma sociedade menos corrupta ou até mesmo honesta saberá lidar com essas questões com lisura e sem hipocrisias.

celsolungaretti disse...

COMPANHEIRO, O DALTON CONTINUA TENDO DIFICULDADE PARA POSTAR ELE PRÓPRIO O COMENTÁRIO, MAS MANDOU ESTA RESPOSTA P/ VC:

Caro SF,

Considero sempre oportunas as suas observações, principalmente porque levantam questionamentos úteis ao processo de discussão sobre os caminhos e pós-caminhos da emancipação.

O capitalista ou dirigente empresário vive, hoje, num sufoco mental (ainda que rodeado de confortos materiais) graças às dificuldades de reprodução do capital na vida empresarial em depressão. A queda tendencial da taxa de lucro prevista por Marx há 150 anos, que exige investimentos cada vez maiores em capital fixo (equipamentos, instalações, tecnologia, etc.) com remuneração do capital cada vez menor, ou prejuízos e falências, causa tensão no meio empresarial que, obviamente, não quer perder o poder econômico. É claro que o desespero dos trabalhadores empregados, subempregados ou desempregados é ainda maior.

O sujeito automático da forma valor, que é quem dita ordens na vida mercantil, é ditatorial, e impõe aos seus súditos (empregadores e empregados) as agruras de seu limite interno de expansão, e em seu processo de autodestruição exige o sacrifício de todos, tal qual um moloch insaciável. Todos sofremos (uns de uma forma e outros de outra) nessa relação social reificada e abstrata como a que temos, que por assim ser, é destituída de sensibilidade e humanismo. Cabe a nos destruí-la, e não obedecê-la, e quem tem interesse na compreensão dessa necessidade e luta por essa transformação devem ser os indivíduos que tenham a sensibilidade de se colocar em contraponto a esse moinho satânico, ainda que dele dependa (por enquanto) para sobreviver, pois, afinal ainda temos todos que acordar todos os dias para ganhar o dinheiro que nos sustenta e nos destrói, concomitantemente.

É evidente que o direito, consubstanciado num conjunto de regras de comportamento social, nascido de uma sociedade cujos preceitos de convivência tenham como base o direito natural (jus) e o senso de justiça associado a um sistema de julgamento (fas) que não precise se desdobrar em firulas jurídicas como o que temos nas sociedades atuais, para fazer parecer justo o que não é, será mais próximo da realização do ideal de justiça, e saberá coibir os desrespeitos às regras de convivência; o oportunismo nocivo; as mazelas humanas criminais, pois as imperfeições dos seres humanos não desaparecerão ipso facto ás mudanças de sociais de base juntamente com seus conceitos. Entendo que será um processo de construção de um ser superior que demandará tempo através do caminho correto.

E assim que penso.

Um grande abraço, Dalton Rosado.

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