domingo, 29 de maio de 2016

STILL CRAZY AFTER ALL THESE YEARS

Por André Mauro...
Sou o antigo crítico de rock André Mauro. Quer dizer, o ex-guerrilheiro Celso Lungaretti. Melhor ainda: ambos (1).

Dupla identidade é um ingrediente fascinante nas artes populares, desde Dr. Jeckyll/Mr. Hide até Clark Kent/Super-Homem. Houve quem dissesse que o George W. Bush era um clone do Hitler com o bigode raspado...

O próprio Maluco Beleza deu uma tacada certeira nessa direção: “Raul Seixas e Raulzito/ Sempre foram o mesmo homem/ Mas pra aprender o jogo dos ratos/ Transou com Deus e com o lobisomem” (As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor).

Mas, não foi por amor à arte que eu, Celso Lungaretti, vivi minha fase André Mauro. Foi por necessidade, mesmo.

Em 1979, eu tinha atrás de mim uma trajetória de metamorfose ambulante: zé mané de baixa classe média até os 16 anos, líder secundarista aos 17, comandante guerrilheiro aos 18 (o mais jovem da época), preso político aos 19, bicho-grilo dos 20 aos 22, jornalista obrigado a manter-se tão anônimo quanto possível dos 23 aos 28.

Trabalhava em chatérrimas assessorias de imprensa, botando frases inteligentes na boca de empresários burros. Preferiria, claro, os grandes jornais e revistas, mas as portas estavam fechadas por causa do meu passado subversivo.
...aliás, Celso Lungaretti.

Aí, recomendado por um amigo, fiz no final daquele ano a crítica do álbum The Wall, do Pink Floyd, para a revista Música, que era a segunda principal publicação do gênero, atrás apenas da Som 3, do Maurício Kubrusly.

Para passar despercebido aos censores da ditadura, assinei como André Mauro. Os três sócios-editores gostaram, pediram mais. Logo em seguida, ofereceram-me duas páginas por edição para falar sobre rock; criei a seção Rock Stars.

Que logo pulou para quatro páginas. E passou a existir também como uma revistinha independente, homônima, de atrações diversificadas, inteiramente escrita por meu ersatz André Mauro.

E me entregaram também a Internacional-Extra, na qual eu contava a história de bandas e artistas. E criei a Rock Show, de variedades roqueiras; e a Rock Passion, puxada para o heavy-metal.

Oh, how we danced!, como disse outro talento da minha geração, o Jim Capaldi. Nunca me diverti tanto no jornalismo (e poucas vezes ganhei tão pouco, mas faturava uns trocados extras vendendo aos sebos a tonelada de discos que as gravadoras me mandavam).

Meu sucesso periférico se deveu a um pequeno detalhe: naquele estagnado final da década de 1970, a MPB e o pop monopolizavam as paradas de sucesso e os espaços na grande imprensa, mas o público da Editora Imprima era diferente, mais pobre e mais roqueiro. Então, fazia falta quem falasse do rock com força e devoção. Fui o homem certo, na hora certa.

Até por serem minoritários, os roqueiros ainda cultivavam a mística contestadora, vendo a si próprios como antagonistas da caretice ambiente. E era exatamente o enfoque contestatório e alternativo o que  eu lhes oferecia, como remanescente da geração das flores, fã de Joe Cocker, Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morrison. Mantinha vivo o rock das catacumbas.

Enquanto isso, na superfície, Peter Frampton, Elton John e Abba eram grandes atrações, enquanto o Queen colocava o Brasil na era dos grandes espetáculos em estádios de futebol.

[Aliás, quando a banda de Freddie Mercury andou por aqui, botei na minha matéria que seu nome aludia a uma das gírias para designar homossexuais. O fã-clube paulistano do Queen, incrivelmente, ignorava esse fato. Quis até tirar satisfações. Macaco velho, marquei a reunião na minha editora e os injuriados, como peixes fora d’água, acabaram se comportando bem...]

Uma das minhas sacações: perceber que o estreante Iron Maiden iria longe. Fomos os primeiros a dar capa de revista para o simpático esqueleto  Eddie, aproveitando o gancho  do rock macabro (a edição enfocava também Black Sabbath, Alice Cooper, Uriah Heep e não me lembro mais quem).

Creio ter sido o último dos críticos roqueiros a seguir os padrões do Pasquim, da Rolling Stone brasileira e outras publicações underground, fazendo uma leitura aberta do rock. Em vez de ficar só no óbvio, enriquecia as análises com informações políticas, literárias, históricas, filosóficas, etc.

Um exemplo: os diretores decidiram fazer a enésima revista para faturarem em cima da nostalgia pelos Beatles, mas eu não tinha saco para repetir a ladainha de sempre. Então, botando a cabeça pra funcionar, acabei notando que o quarteto já estava na estrada há algum tempo, mas só veio a estourar logo depois da crise dos mísseis cubanos, em outubro de 1962.

Então, comecei meu texto contando a história daqueles 13 dias em que todos pensaram que o mundo fosse acabar numa guerra atômica e do imenso alívio que sobreveio quando a crise foi superada, com as pessoas cantando e abraçando-se nas ruas, embriagando-se nos pubs, transando adoidadas.

Elucubrei que, depois de estarem tão próximas da morte, precisavam extravasar, botar pra quebrar, daí terem embarcado imediatamente na alegria e na desrepressão personificada pelos Beatles.

Meio forçado? Talvez. Mas, levava os jovens a olharem para outro lado, a ampliarem seus horizontes. Daí ter mexido com a cabeça de muita gente. Até hoje encontro meus velhos textos copiados em blogs por aí. Como este sobre rock alemão, do qual reproduzo um trecho que dá uma boa ideia de como era o estilo André Mauro:
"Que tal ser jovem num país que vive em ritmo de usina e se assemelha a um paiol, onde o fósforo aceso descuidadamente pode mandar tudo pelos ares? Os alemães respondem com sua arte: discos e filmes, o que mais nos chega, têm como ponto comum uma frieza de enregelar. A sociedade que se adivinha por trás deles é extremamente tecnológica, espantosamente robotizada e miseravelmente desumana. 
Neles não há piadas. Há uma total falta de perspectivas, mitigada pelas drogas e por remotos sonhos de evasão. A estrada é um símbolo primordial -- escapar para longe, onde não existem fronteiras nem muros (vide os filmes de Wim Wenders; vide o LP Autobahn, que popularizou o Kraftwerk)."
Pileques com o Raul Seixas - Minha lembrança mais grata dessa fase é a breve amizade com o Raul Seixas. Tudo começou quando cobri a coletiva que ele deu ao lançar seu primeiro disco pela CBS, Abre-te Sésamo.

Talvez por causa do horário matinal, amaldiçoado pelos boêmios, o maluco não estava brilhante, só disse o previsível. Mas, circo desmontado, o assessor de imprensa da gravadora armou um almoço de nós três mais a Kika (também funcionária da CBS), que acabaria sendo a última namorada da vida do Raul.

Fomos num restaurante chinês da rua Theodoro Sampaio e aí, sim, o  Raulzito  aflorou, turbinado pelo saquê que chamou e pela garrafinha metálica de uísque que carregava no bolso. Caprichou nos gracejos, non-sense e brincadeiras. Disse grandes frases e pequenas amenidades (tipo, tal artista "não canta nada, mas que coxas ela tem!”). 

Finalmente, foi embora quase arrastado pelo pessoal da CBS, pois estava atrasado para a entrevista que daria à Folha de S. Paulo. Não adiantou. No trajeto caiu em sono profundo e, quando finalmente conseguiram acordá-lo, preferiu ir pra casa descansar...

Ao escrever minha matéria, matei a coletiva com cinco linhas e dediquei umas 40 ao que rolou no almoço, num estilo apropriadamente etílico. Qualifiquei Raul de “admirável guerreiro que insiste em manter a loucura dos anos 60 em meio ao marasmo e calculismo dos 80” e incluí uma confissão: escutar Cachorro Urubu, com seus versos alusivos à rebelião jovem de Paris (“E todo jornal que eu leio/ Me diz que a gente já era/ Que já não é mais primavera/ Oh, baby, a gente ainda nem começou”), lavava minha alma naqueles tempos depressivos em que todos repudiavam a anarquia e a porra-louquice de 1968.

Mal leu a revista, o Raul ligou para a redação, convidando-me para um happy-hour da CBS, que queria mostrar o novo vídeo promocional do Police. A boca-livre era numa casa noturna chiquérrima, mas não incluía os itens do cardápio, só o serviço padronizado. Quem queria mais, pedia por sua própria conta e a despesa era lançada numa comanda.
Batemos bons papos até ele ficar  alto. Quando eu estava saindo de fininho, o Fred Jorge (letrista do Roberto Carlos no tempo da Jovem Guarda e diretor da CBS por exigência do rei), disse:
— Oh, Celso, o Raul bebeu demais e vai acabar dando vexame. Você não mora no Centro? Então, leva ele até o hotel, você não vai sair muito do seu caminho...
Não adiantou, o vexame acabou mesmo acontecendo. O Raul perdera a comanda, que poderia ter sido utilizada por outro convidado para pedir uísque importado de montão. Então, os funcionários  não queriam deixá-lo ir embora. E ele gritava, furioso:
— Quer dizer que estou preso? Eu estou preso?!
O Fred Jorge acabou se responsabilizando, em nome da CBS, por qualquer gasto mandrake que aparecesse. E eu levei o Raul desacordado até um hotel na av. Duque de Caxias, defronte a antiga Rodoviária. Precisei da ajuda do porteiro para tirá-lo do carro.

Depois, ainda o visitei algumas vezes na casa onde passou a morar, em Pinheiros, se bem me lembro. Uma delas foi quando trocou a CBS pelo Estúdio Eldorado. Conversávamos e bebíamos muito. Fiquei sabendo que ele e o Paulo Coelho interessavam-se por ocultismo, traduzindo livros obscuros, não lançados no Brasil, para próprio uso. Os do Aleister Crowley em primeiro lugar, evidentemente.
Crowley, ídolo do Raulzito e do Paulo Coelho

[Ou seja, Paulo Coelho, que de mago não tem nada, apenas montou um personagem em cima do que ele e o Raul andaram lendo e pesquisando na década de 1970...]

Até que não pintou mais nenhuma oportunidade e deixamos de nos ver (2)

Depois, em dezembro de 1984, fui obrigado a deixar a Editora Imprima, encerrando a fase de crítico roqueiro.

É que a crise do papel encarecera muito as revistas, de forma que os donos decidiram cortar metade dos títulos sob minha responsabilidade. Com o que sobrava, eu não conseguiria sobreviver.

Saí para fazer o que detestava: trabalhar por dinheiro, sem prazer. Foi o que fiz, como jornalista, durante quase duas décadas.

Nova batalha, já cinquentão - Corta para dezembro de 2003. Crise econômica fustigando o mercado jornalístico, fiquei desempregado. Já cinquentão, endividado até o último fio de cabelo, passei dois anos de dificuldades e penúria. Tive de vender CDs, discos, livros, fitas de vídeo, gibis, tudo que colecionara durante minha vida inteira.

E, como tábua de salvação, fui lutar publicamente pela reparação a que tinha direito como ex-preso político com lesão permanente decorrente de torturas em instalações militares. É que a anistia federal atendia primeiramente os amigos do rei  e eu precisava de uma solução urgente, não podia ficar esperando enquanto me passavam para trás.
Comissão de Anistia: palco de uma dramática batalha.
Transcorreram exatos 50 meses, entre a entrada do meu pedido e a primeira grana depositada. Mesmo assim, foi o que me salvou, permitindo-me reconstruir a vida, mais uma vez.

A repercussão de minha luta abriu caminho para o lançamento de um livro, pela Geração Editorial: Náufrago da Utopia. E, desde 2006, venho, principalmente, espalhando artigos pela internet e disponibilizando meus textos em blogues, com alguma repercussão. Inclusive alguns escritos da fase André Mauro que ainda considero válidos.

Pois essas vivências me definem. Fui vários personagens e não nego nenhum; são facetas da mesma recusa de uma sociedade inaceitável e da mesma procura de alternativas individuais e coletivas.

Como o rapazote que pegou em armas contra a ditadura, continuo inimigo do capitalismo; os meios são outros, o inconformismo permanece.

E, como o hippie e o roqueiro, acredito que a concretização dos ideais de justiça social e liberdade plena se dará nos marcos de 1968: construindo-nos como homens novos paralelamente à construção da sociedade nova, ao invés de tomarmos o governo para tentarmos transformar a realidade de cima para baixo.

Mesmo porque o sistema está podre até a medula. Quem tenta modificá-lo de dentro, acaba, isto sim, sendo modificado por ele: vai se tornando cada vez mais parecido com os inimigos que antes combatia.


NOTAS

1.
Tendo abandonado a crítica de rock em dezembro/1984, fui surpreendido em 2008 com o convite para fazer uma seção fixa na revista MP3 World. A colaboração, efêmera, começou com o texto que reproduzi integralmente acima, publicado na edição nº 3. Achei interessante, na reestreia, explorar o fato, desconhecido para alguns roqueiros que ainda se lembravam do meu trabalho, de que o
quase guru André Mauro ninguém mais era do que o revolucionário Celso Lungaretti (ou talvez tenha sido apenas por falta de coisa melhor para escrever, depois de passar tanto tempo distante da crítica de rock...).


2. Curiosamente, acabo de encontrar na internet uma tese universitária (!) sobre a revista Música, que reproduziu até a pitoresca defesa que fiz da decisão do Raulzito de assinar contrato com o Estúdio Eldorado. Dá sempre uma sensação estranha relermos, após décadas, o que já nem lembrávamos de haver um dia escrito:
"
Depois de manter acesa a chama do rock durante tantos anos, Raul percebeu que oportunistas estavam tirando uma de roqueiros, sob os auspícios globais. Daí se enfureceu: se voltava o rock, era ele, Raul, quem deveria colher os frutos de sua persistência. Então, para expulsar os malandros otários de seu pedaço, teve que transar com o Diabo, aceitando uma maçã bichada, que valia apenas pelo ouro de Eldorado.
 
 
"Afinal, naquela hora crucial, só Mephisto/Mesquita apostou nele. Tratava-se de algo assim como uma última chance, com a velhice chegando, o fígado em frangalhos, as multinacionais de disco fechando-lhe as portas depois das tempestuosas passagens pela Philips, WEA e CBS. Apesar da teimosia braba, o guerreiro compreendeu que chegara a hora do repouso. Afinal, rendendo dez por cento do que pode, ele já afugenta Dusek para o canil e a Blitz para a ponte que a partiu. Deu certo, Raul está aí, na crista da onda".

2 comentários:

Anônimo disse...

Os cavaleiros do apocalipse eram os seus leitores enquanto crítico de rock. Que linguagem deliciosa, emocionante e deleitosa. Fomos acreditando no que amamos, curtimos e cultuamos a cada revistinha, principalmente a rock stars, a internacional extra e a rock show, fora aqueles textos que se podiam encontrar em revistas similares. Se o senhor era o Celso, que fosse, para nós é o eterno André Mauro. Comandante da cavalaria que nos conduziu ao topo da montanha, nos fez levantar as mãos e tocar o céu, estar com as estrelas e olhar para o chão e pular sem alguma dúvida, para cair em um lago calmo onde finalmente viveríamos em paz. Como roqueiro, agradeço sua participação como crítico de rock, deveria ter continuado, pelo simples prazer de escrever sobre ele. Um forte abraço, que desde 35 anos atrás queria endereçá-lo ao senor.

celsolungaretti disse...

É emocionante ler algo assim quando já estou too old to rock'n roll e nem sequer posso me considerar too young to die.

Tantas vezes eu passei perto da morte e me safei por mero acaso que hoje eu me sinto mais um sobrevivente: não só dos sonhos que persegui, como dos valores da minha geração, que tentou o assalto ao paraíso, não concretizou o objetivo, mas lutou como nenhuma outra, vendendo bem caro a derrota.

Quanto a ser Celso ou André Mauro, creio que o maluco beleza já deu a resposta: "Raul Seixas e Raulzito sempre foram o mesmo homem, mas pra aprender o jogo dos ratos transou com Deus e com o lobisomem".

Ou seja, as duas personas foram facetas do mesmo inconformismo com o status quo e a sociedade que o dinheiro construiu, e dentro da qual aos 15 anos já sabia que jamais seria feliz.

Procurei construir outra melhor de todas as maneiras e era sempre o que eu queria estar fazendo. Tanto que continua sendo o que faço até hoje, principalmente com os dedos no teclado, mas também no asfalto: não faltei a nenhuma das manifestações #ForaBolsonaro ocorridas aqui em Sampa.

E, enquanto conservar a lucidez e a força, que felizmente ainda não me abandonaram, continuarei travando o bom combate. Como venho fazendo desde a virada de 1967 a 1968, quando decidi que dedicaria a minha vida a combater os podres poderes desta sociedade agônica.

Um forte abraço, companheiro! Você tornou mais feliz este meu sábado modorrento e sem perspectivas.

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