"...assim, mal dividido,
esse mundo anda errado:
que a Terra é do homem,
não é de Deus nem do diabo"
(Sérgio Ricardo, O sertão vai virar mar)
Apollo Natali, meu amigo há décadas e ex-colega de redação na Agência Estado, é um dos grandes jornalistas e dos melhores seres humanos que conheço. Sua opinião terá sempre lugar e vai ser sempre respeitada neste blogue, daí eu ter imediatamente concordado com seu pedido de espaço para publicação do artigo Não sou Charlie (acesse aqui), expressando seu descontentamento, como religioso, com filmes e publicações que lhe parecem inconvenientes.Também tenho, claro, algumas palavras a dizer. Não se nega aos crentes o direito de sentirem-se ofendidos, mas vale lembrar que nenhum deles é obrigado a ler o Charlie Hebdo ou ver A última tentação de Cristo. Os que o fizeram, provavelmente, foi em função do falatório e das polêmicas, para verificarem se era ou não verdade o que se dizia a respeito de ambos --já predispostos, portanto, à indignação.
No Ocidente, com a separação entre Igreja e estado, sua única iniciativa possível contra a fita era recorrerem aos tribunais. Felizmente, países contemporâneos à própria época não censuram filmes por atentarem contra a imagem de personagens históricos que alguns consideram sagrados, outros não. E já vão longe os tempos em que católicos queimavam bruxas e lançavam cruzadas sanguinárias contra os infiéis, então nenhuma besta-fera foi encher de balas o diretor Martin Scorcese ou o ator Willem Dafoe (que interpretou Cristo)
Os responsáveis pelo semanário, por sua vez, jamais fizeram o que seria, realmente, uma provocação: providenciar traduções e lançar edições direcionadas para países e contingentes humanos que vivem no século 21, mas continuam com a cabeça no século 6.
A quais maometanos antes incomodavam, de verdade, os 60 mil exemplares do Charlie Hebdo comercializados semanalmente na Europa? Pouquíssimos, decerto. O que houve não foi nenhuma reação furibunda de indivíduos emocionalmente primitivos que estariam sentindo-se agredidos em sua fé, mas sim uma sanguinária e calculista demonstração de força de terroristas clássicos (aqueles que, como francos-atiradores dissociados das massas e sem estarem contribuindo para nenhum ascenso revolucionário, utilizam a violência apenas para punirem e intimidarem seus inimigos), os quais garimparam diligentemente, até encontrarem, um alvo condizente com a mensagem que queriam passar.
Terroristas clássicos obtêm muitos holofotes, mas sua pirotecnia quase sempre levanta a bola para o inimigo marcar pontos, além de eventualmente ter consequências catastróficas. No primeiro caso está, p. ex., a tentativa de matarem o czar Alexandre III em 1897, que redundou na execução do irmão do Lênin, Alexandre Ulianov, e de quatro de seus companheiros, além, é claro, de um previsível agravamento da repressão política.
E no segundo, tanto o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando por parte do mão negra Gravilo Princip em 1914, que conduziu aos horrores da 1ª Guerra Mundial; quanto o atentado ao WTC em 2011, responsável pela pior escalada global de estupro dos direitos humanos e perseguição a inocentes que os cidadãos de origem árabe já sofreram.
Marxistas e anarquistas há muito descartaram e se dissociaram do terrorismo clássico. Nos últimos tempos, contudo, contingentes desnorteados de esquerda, trocando a coerência com seu amadurecimento político que já haviam atingido pela mais tacanha realpolotik, vêm cometendo uma dupla heresia (este termo retrô cai como uma luva no atual contexto...):
Terroristas clássicos obtêm muitos holofotes, mas sua pirotecnia quase sempre levanta a bola para o inimigo marcar pontos, além de eventualmente ter consequências catastróficas. No primeiro caso está, p. ex., a tentativa de matarem o czar Alexandre III em 1897, que redundou na execução do irmão do Lênin, Alexandre Ulianov, e de quatro de seus companheiros, além, é claro, de um previsível agravamento da repressão política.
E no segundo, tanto o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando por parte do mão negra Gravilo Princip em 1914, que conduziu aos horrores da 1ª Guerra Mundial; quanto o atentado ao WTC em 2011, responsável pela pior escalada global de estupro dos direitos humanos e perseguição a inocentes que os cidadãos de origem árabe já sofreram.
Marxistas e anarquistas há muito descartaram e se dissociaram do terrorismo clássico. Nos últimos tempos, contudo, contingentes desnorteados de esquerda, trocando a coerência com seu amadurecimento político que já haviam atingido pela mais tacanha realpolotik, vêm cometendo uma dupla heresia (este termo retrô cai como uma luva no atual contexto...):
- a de defenderem fundamentalistas religiosos que não querem, de maneira nenhuma, fazer a humanidade avançar para além do capitalismo, mas sim fazê-la retroceder para antes do capitalismo, ou seja, para as trevas medievais; e
- a de defenderem terroristas clássicos e seus monumentais tiros pela culatra, tornando-se parceiros dessas derrotas e associando estupidamente sua imagem a carnificinas que qualquer cidadão isento repudia.
Caem no vazio suas tentativas de relativização de um episódio que foi, isto sim, totalmente bestial e absolutamente condenável. Quando alguém é chacinado por dá-lá-aquela-palha, buscar justificativas para o crime soa hipócrita e aberrante. Uma das diferenças entre nós e os animais é que, ao contrário dos touros, não temos nenhuma compulsão irresistível de destruir um semelhante apenas porque veste vermelho.
Reconheço e até admiro a boa fé de religiosos como o Apollo Natali, mas não perdoo os esquerdistas que abdicam do seu compromisso fundamental com a civilização, passando a raciocinar como simplórios torcedores de futebol ("Se é contra os EUA, a Europa e Israel, vale tudo, até gol de mão nos acréscimos, em posição de impedimento"...).
Por último: religiosos de ocasião e por conveniência à parte, como fica a questão das pessoas devotas que, sinceramente, sentirem-se insultadas em sua fé?
Ora, sendo nosso estado laico, homens tidos como santos são encarados, por quem não é religioso, como personagens históricos (ou fictícios) iguais a quaisquer outros. Não cabe nenhuma forma de censura ou perseguição dos poderes públicos a quem trata Cristo ou Maomé da mesma forma que, digamos, Vlad Dracul e Hitler (os quais, aliás, têm lá seus defensores, mas 99,9% do que aparece sobre eles em filmes e semanários é extremamente negativo).
E, como a ninguém é dado o direito de fazer justiça com as próprias mãos no Brasil do século 21, só resta aos ofendidos o caminho dos tribunais e de iniciativas visando ao convencimento da opinião pública (desde anúncios pagos até campanhas virtuais incentivando o boicote aos blasfemos).
No fundo, o que os religiosos pretendem é que se conceda um tratamento diferenciado para quem eles consideram diferente. Mas, agnósticos, ateus e mesmo religiosos de outras confissões podem discordar (um neopentecostal admitiria, p. ex., Oxalá como similar a Jesus Cristo?). Então, não faz nenhum sentido, em termos legais ou morais, pretender que a imprensa não os ridicularize como ridiculariza outros personagens históricos do passado e do presente.
Podemos até achar que a irreverência é exagerada no seu todo, que a nossa imprensa pega pesado demais com Paulo Maluf e Jair Bolsonaro, ou que a francesa pega pesado demais com Jean-Marie Le Pen e Maomé. O que não podemos é aceitar como válidos os piores achincalhes a Bolsonaro, Maluf e Le Pen e, ao mesmo tempo, não admitir a mais inofensiva irreverência com Maomé.
Caso contrário, para que terão servido, afinal, 1945 e 1985 aqui, o iluminismo e a grande revolução lá? E de que valeu tantos resistentes morrerem lutando contra os nazistóides daqui e contra os nazistas de lá? Pois eram todos expressões da intolerância, fanatismo e autoritarismo inseparáveis da tese da intocabilidade dos homens santos...
Além do mau humor e dos maus bofes, claro!
Por último: religiosos de ocasião e por conveniência à parte, como fica a questão das pessoas devotas que, sinceramente, sentirem-se insultadas em sua fé?
Ora, sendo nosso estado laico, homens tidos como santos são encarados, por quem não é religioso, como personagens históricos (ou fictícios) iguais a quaisquer outros. Não cabe nenhuma forma de censura ou perseguição dos poderes públicos a quem trata Cristo ou Maomé da mesma forma que, digamos, Vlad Dracul e Hitler (os quais, aliás, têm lá seus defensores, mas 99,9% do que aparece sobre eles em filmes e semanários é extremamente negativo).
E, como a ninguém é dado o direito de fazer justiça com as próprias mãos no Brasil do século 21, só resta aos ofendidos o caminho dos tribunais e de iniciativas visando ao convencimento da opinião pública (desde anúncios pagos até campanhas virtuais incentivando o boicote aos blasfemos).
No fundo, o que os religiosos pretendem é que se conceda um tratamento diferenciado para quem eles consideram diferente. Mas, agnósticos, ateus e mesmo religiosos de outras confissões podem discordar (um neopentecostal admitiria, p. ex., Oxalá como similar a Jesus Cristo?). Então, não faz nenhum sentido, em termos legais ou morais, pretender que a imprensa não os ridicularize como ridiculariza outros personagens históricos do passado e do presente.
Podemos até achar que a irreverência é exagerada no seu todo, que a nossa imprensa pega pesado demais com Paulo Maluf e Jair Bolsonaro, ou que a francesa pega pesado demais com Jean-Marie Le Pen e Maomé. O que não podemos é aceitar como válidos os piores achincalhes a Bolsonaro, Maluf e Le Pen e, ao mesmo tempo, não admitir a mais inofensiva irreverência com Maomé.
Caso contrário, para que terão servido, afinal, 1945 e 1985 aqui, o iluminismo e a grande revolução lá? E de que valeu tantos resistentes morrerem lutando contra os nazistóides daqui e contra os nazistas de lá? Pois eram todos expressões da intolerância, fanatismo e autoritarismo inseparáveis da tese da intocabilidade dos homens santos...
Além do mau humor e dos maus bofes, claro!
4 comentários:
Não se ofenda com o que vou dizer Celso, mas há jornalistas(Thierry Meyssan é um deles) e alguns blogueiros afirmando que os atentados de Paris foram um ataque de falsa bandeira, feitos por um comando militar altamente treinado e cujo fim é provocar uma guerra civil entre muçulmanos e não-muçulmanos.
Por mais bizarro e teoria da conspiração que pareça, é uma possibilidade que merece ser considerada, ao menos em minha opinião.
Alyson
Alyson,
eu começarei a considerar a hipótese de uma conspiração quando altos dirigentes jihadistas desmentirem a participação de suas organizações e repudiarem a chacina.
Enquanto os desmentidos vierem só do mundo ocidental e lá no Oriente eles continuarem heroicizando aqueles animais, nada feito.
Abs.
Não passa desapercebido que nesse debate interminável tanto um lado como o outro alicerçam suas opiniões em indisfarçáveis idiossincrasias.
Parte da esquerda no que tange à americanofobia e a direita com a sua americanofilia.
O debate político no Brasil ficou insuportável.
Discordo, companheiro. Não vejo os EUA como o sujeito oculto deste debate.
Trata-se, isto sim, de um confronto entre os defensores intransigentes dos direitos humanos e uma esquerda desvirtuada que trocou seus princípios e valores pela realpolotik, alinhando-se explicita ou implicitamente com tiranos e carrascos que tenham algum conflito de interesses com o "império".
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