segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

SAIBA POR QUE A "FOLHA" FICOU TÃO INCOMODADA COM O RELATÓRIO DA CNV

Despertando imensa indignação em 2009
Quem conhece o viés conservador/reacionário dos jornalões brasileiros, não se surpreendeu com a defesa incondicional que os três principais (O Estado de S. Paulo, a Folha  de S. Paulo e O Globo) fizeram da indefensável anistia de 1979, cuja revisão acaba de ser recomendada por alguns integrantes da Comissão Nacional da Verdade e por dois ministros do Supremo Tribunal Federal.

Ao defenderem-na, tais tentáculos da indústria cultural omitem que ela não passou de um mostrengo jurídico, a mera imposição da lei do mais forte sobre uma oposição expurgada (por frequentes cassações dos mandatos de seus parlamentares) e chantageada (a libertação de centenas de presos políticos e a permissão de volta dos exilados dependiam de sua anuência a tal grotesquerie). 

Assim como a presidenta Dilma Rousseff, entoam em uníssono a cantilena do respeito aos "pactos e acordos que levaram o país à redemocratização", sem jamais esclarecerem que o pacto se deu entre Fausto e Mefistófeles, e que o acordo foi selado por quem mantinha reféns com quem ansiava por vê-los livres.

A ONU, a OEA e o Direito internacional desconsideram quaisquer simulacros de anistias gestados em plena vigência do arbítrio, com o objetivo de fornecerem uma espécie de habeas corpus preventivo para agentes do Estado que estupraram os direitos humanos (e para os seus mandantes).

Semeando a confusão em 1964
Também não causa surpresa nenhuma o fato de que, dos três, seja o mais envolvido com as atrocidades da ditadura quem mais se esforce para desacreditar o relatório final da CNV.

Assim, em editorial de 12/12/2014, Página virada (vide íntegra aqui), a Folha sustentou uma tese das mais estapafúrdias e ofensivas para os brasileiros, qual seja a de que o axiomático para os países civilizados não vige nestes tristes trópicos:
"Não é sensato nem desejável que compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, determinando que a tortura é crime imprescritível, possam sobrepor-se à soberania jurídica nacional quando se trata das próprias fundações do Estado de Direito entre nós"
Ou seja, o editorialista quis fazer-nos crer que apurarmos a responsabilidade por crimes hediondos e punirmos os culpados abalaria as "próprias fundações do Estado de Direito entre nós". Quem mais estaremos impedidos de submeter à Justiça? Os grandes traficantes? Os exploradores da pornografia infantil? Os assassinos seriais?

Será que este disparate provém do mesmo profissional que, em 17/02/2009 (vide aqui), qualificou de ditabranda o despotismo vigente no Brasil entre 1964 e 1985?

Para que a Folha do último dia 12 tivesse jeitão de sexta-feira 13, não poderia faltar a contribuição do Vlad Dracul do colunismo político, Reinaldo Azevedo. Em Comissão Nacional da Farsa (vide aqui), ele repetiu a falácia predileta dos ogros da ditadura e dos cuervos por eles criados, a de que algozes e vítimas são equiparáveis:
"Os assassinatos cometidos por terroristas não ocuparam o tempo dos donos da verdade. Segundo eles, são 434 os mortos e desaparecidos. As 120 pessoas eliminadas pelo terrorismo viraram esqueletos descarnados também de memória".
Colaborando com a repressão em 1970
Quais terroristas, cara pálida? Os inventados nos anos de chumbo pelos serviços de Guerra Psicológica das Forças Armadas, ao aplicarem um rótulo descabido a quem justificadamente pegou em armas contra uma ditadura?

Tratou-se de uma ignominiosa manipulação, que visava a efeitos meramente propagandísticos. Até as pedras sabem que os resistentes jamais pretenderam insuflar o terror, mas sim libertar o País de tiranos --os quais, eles sim, recorreram desmedidamente ao terrorismo (de estado) para manter o povo brasileiro amedrontado e subjugado.

Vale repetir: a resistência à tirania é um direito inalienável dos cidadãos, que remonta à Antiguidade e hoje ninguém mais contesta no mundo civilizado. Então, não é o caso de, simplesmente, compararmos atos de violência com outros atos de violência, como se fossem grandezas equivalentes.

A violência perpetrada por agentes do Estado, visando à perpetuação de um governo ilegítimo (pois resultante de uma quartelada), tem uma caracterização jurídica diametralmente oposta à da violência praticada por civis que, em condições de extrema inferioridade de forças, resistiam a tal despotismo.

Ademais, a violência dos agentes do Estado foi relevada, estimulada e acobertada, permanecendo impune até hoje, enquanto a violência dos resistentes já foi punida nos anos de chumbo --da forma mais arbitrária e com rigor extremo, quase sempre descambando para a bestialidade.

RA deveria estar-se mirando no espelho, quando escreveu que "esse relatório é um lixo moral"...

Por último, é alogiável que a Folha de 15/12/2014, ao dar voz aos familiares de vítimas da esquerda (vide aqui), tenha apresentado os dois lados do caso do empresário Henning Albert Boilesen:
Retaliada pelos resistentes em 1971
  • o compreensível desabafo do filho (segundo quem se tratava de "um pai de família que, certo dia, despediu-se da mulher, saiu para trabalhar e levou 25 tiros na cabeça de terroristas de esquerda"); 
  • e também a informação de que "o relatório da Comissão Nacional da Verdade afirma que Boilesen era um empresário que arrecadava recursos para o aparato de repressão e que chegou a importar um aparelho de choques e a assistir a sessões de tortura".

Poderia explicar melhor, claro. Boilesen não foi um financiador da repressão qualquer, mas sim o principal deles. Ao criarem a Operação Bandeirantes, as Forças Armadas não assumiram de imediato a paternidade do monstro, deixando que permanecesse durante o segundo semestre inteiro de 1969 na semiclandestinidade: não tinha existência legal, mas mandava mais do que o Deops, ao qual institucionalmente competia a repressão aos subversivos.

Então, foi uma vaquinha organizada por Boilesen junto a seus amigos (empresários fascistas) que bancou o funcionamento da Oban, pois, naquele tempo, era menos usual o desvio de recursos orçamentários para outras finalidades. Esta situação persistiu até 1970, quando os militares instituíram o DOI-Codi (que absorveu a Oban, legalizando-a...).

E foi também graças aos esforços de Boilesen que os órgãos de repressão passaram a contar com generosas doações para premiarem os torturadores que capturassem ou matassem os membros da resistência. Havia até uma tabelinha de preços por cabeça, à maneira dos cartazes de procurado vivo ou morto que vemos nos filmes de faroeste.

Qual movimento de resistência de qualquer país e de qualquer época que não justiçaria alguém como Boilesen, o homem que alimentava e açulava os pitbulls responsáveis por tantas mortes e torturas de seus quadros?
Manifestação diante da delegacia que sediou a Oban

De qualquer forma, a Folha pelo menos fez constar, ainda que sucintamente, o outro lado referente ao Boilesen. Só esqueceu do outro lado referente a si própria, pois, no mesmíssimo capítulo referente ao Boilesen, o relatório final da CNV também a cita:
"Ficou conhecido o banquete organizado pelo ministro Delfim Netto no Clube São Paulo, antiga residência da senhora Viridiana Prado, durante o qual cada banqueiro, como Amador Aguiar (Bradesco) e Gastão Eduardo de Bueno Vidigal (Banco Mercantil de São Paulo), entre outros, doou o montante de 110 mil dólares para reforçar o caixa da Oban.
Ao lado dos banqueiros, diversas multinacionais financiaram a formação da Oban, como os grupos Ultra, Ford, General Motors, Camargo Corrêa, Objetivo e Folha (grifo meu)".
E, mais adiante:
"...a pesquisadora Beatriz Kushnir constatou a presença ativa do Grupo Folha no apoio à Oban, seja no apoio editorial explícito no noticiário do jornal Folha da Tarde, seja no uso de caminhonetes da Folha para o cerco e a captura de opositores do regime".
Vale lembrar, ainda, que a Folha foi o grande jornal mais tímido no repúdio ao sórdido papel histórico que desempenhara nos anos de chumbo.

A família proprietária do Estadão jamais escondeu sua participação no golpe de 1964, mas se distanciou dos militares quando estes descumpriram a promessa de devolver o poder saneado aos civis e, ao invés disto, radicalizaram a ditadura. A partir de então, O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde mantiveram postura exemplar, denunciando o arbítrio e se tornando alvos preferenciais da censura. 

Os Mesquitas mostraram até coragem pessoal em algumas situações, como quando orientaram os seguranças da casa a impedirem que os agentes do DOI-Codi sequestrassem um jornalista no ambiente de trabalho  (o dito cujo acabou saindo do prédio no porta-malas do carro do patrão e sendo oculto no sítio do mesmo).

O Globo só deu a mão à palmatória em 31/08/2013 (vide aqui), mas, pelo menos, o fez ostensivamente.

Já a Folha, torcendo para que passasse o mais despercebido possível, inseriu este texto num caderno comemorativo do seu 90º aniversário, acrescentado à edição de 19/02/2011, mais como álibi para quando alguém a acusasse de jamais ter feito a indispensável autocrítica. 

Passaria despercebido em meio ao auê louvaminhas para si própria, caso a ombudsman não tivesse aludido a ele na sua coluna dominical, frustrando a matreirice. Eis o que o jornal sorrateiramente admitiu, entre outros pecados:
"...A partir de 1969, a 'Folha da Tarde' alinhou-se ao esquema de repressão à luta armada, publicando manchetes que exaltavam as operações militares.
A entrega da Redação da 'Folha da Tarde' a jornalistas entusiasmados com a linha dura militar (vários deles eram policiais) foi uma reação da empresa à atuação clandestina, na Redação, de militantes da Ação Libertadora Nacional, de Carlos Marighella... 
...Segundo relato depois divulgado por militantes presos na época, caminhonetes de entrega do jornal teriam sido usados por agentes da repressão, para acompanhar sob disfarce a movimentação de guerrilheiros. A direção da Folha sempre negou ter conhecimento do uso de seus carros para tais fins".
A última frase é daquelas que outrora, invariavelmente, despertavam o comentário "acredite quem quiser!".

Então, faz todo sentido que a Folha, mais de quatro décadas depois, continue tentando relativizar o que não passou de mais um capítulo da eterna luta da civilização contra a barbárie. Como então se alinhou com os bárbaros, está pisando em ovos até agora.

Mas, abstendo-se de informar aos seus leitores que nesta questão não é parte isenta, mas sim interessada, deveria ao menos ser um pouquinho mais discreta. Está dando na vista.

3 comentários:

Anônimo disse...

mesmo que a globo peça estranhas desculpas pelo "equivoco"de ter apoiado o golpe,mesmo que a folha tente distorcer a opiniao publica,nada apaga a historia de um golpe civil militar,dado contra qualquer interesse do bem comum,è tao obvio que qualquer naçao que queira desenvolvimento com integridade e dignidade de sua populaçao tem o dever de nao apoiar governos ilegais e arbitrarios,portanto,todos que apoiam e apoiaram o golpe tinham grandes interesses com isso.pra encerrar celso uma pergunta.fica registrado oficialmente o numero de mortos e desaparecidos pela cnv de aproximadamente 500 pessoas,sendo que muitos documentos foram encinerados e ja na epoca da ditadura,nao se falou nada sobre o araguaia ou cidades de fronteiras ,tambem nao ouve investigaçao,ja ouvi que esse numero subiria para mais de tres mil desaparecidos,oque fazer em relaçao a essa duvida historica?

CARLO PONTI disse...

Brother, não se iluda, a FSP só dá na vista para nós, a maioria dos seus conterrâneos de São Paulo jamais perceberá o lixo que é este jornal, você é meu brodasso, a despeito de que , talvez e só talvez, tenhamos opiniões "diferenciadas", mas não posso me furtar em dizer-te que aquela foto sua( um garoto de 23 anos) enfrentando um monte de milicos, numa ditadura ferrenha, anula todas as divergências. A sua observação sobre a FSP, faz corar de vergonha os jornalistas que lá trabalham, não seus donos, não os paulistanos, não os paulistas, esta gente deste estado tem um ódio tão imensurável a tudo quanto é minimamente favorável ao povo e bota mínimo nisto, que se eles soubessem o que uma pessoa de vanguarda como vc pensa, lhe cuspiria na cara defronte seus filhos, pra dizer o mínimo.

celsolungaretti disse...

Carlo,

na verdade, eu tinha 19 anos quando aquela foto foi batida na Auditoria da Marinha, em meados de 1970. Eu comecei a atuar no movimento secundarista em 1967.

A índole conservadora do povo paulista tem a ver com o fato de vir sendo o estado mais próspero do Brasil desde a industrialização.

Curiosamente, jamais foi tão perceptível como, p. ex., em Minas Gerais. Percebe-se nos resultados eleitorais e em momentos como o pré-1964.

Nasci na Mooca e lá morei até os 18 anos, quando caí na clandestinidade. Sempre achei chocante o esquecimento a que foi relegada a grande greve de 1917. Parecia nem ter começado na fábrica mais importante do bairro, o Cotonifício Crespi.

Meu pai trabalhou a vida inteira no Crespi. Disse-me que a greve, importantíssima e vitoriosa, não ficou na memória. Os operários mais velhos só lembravam de quando a fábrica serviu de abrigo para o povo durante a Revolta Paulista de 1924, quando o governo federal bombardeou a cidade com seus aviões.

Abs.

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