De vez em quando o Elio Gaspari toma emprestado o chapéu do Reinaldo Azevedo ... |
Elio Gaspari, napolitano radicado no Brasil há quase sete décadas, é um homem de esquerda que, em 1968 e anos seguintes, abominava os movimentos contestatórios que sacudiam o mundo.
Assim como o genovês Mino Carta, mantinha-se devoto do comunismo desvirtuado e burocratizado que se desmanchava no ar, esfarelando-se sob o impacto das duas grandes primaveras, a de Paris e a de Praga. Virou as costas à juventude mais combativa que o Brasil já produziu e está resmungando até hoje contra quem verdadeiramente lutou, enquanto seus camaradas se omitiam e até sabotavam a resistência heroica que uns poucos Davis opúnhamos à legião de Golias da ditadura militar.
Nunca esquecerei o desgosto que nos causava receber notícias de morte ou torturas de companheiros queridos, simultaneamente com relatos dos esforços mesquinhos da direção do PCB para convencer seus militantes a não nos apoiarem em nenhuma circunstância, a não nos darem abrigo, a dificultarem o acesso a jornalistas de esquerda que poderiam fornecer-nos informações vitais, a não nos disponibilizarem médicos nas emergências, etc.
Chegou até a fazer publicar no principal jornal do partido (Voz Operária, se bem me lembro) a calúnia de que o comandante Carlos Lamarca seria instrumento da CIA. Sentíamo-nos esfaqueados nas costas pelos velhos stalinistas --que, como os leopardos, não perdiam as pintas, hostilizando os adversários pertencentes ao seu próprio campo com virulência muito maior do que a dedicada aos inimigos de classe.
Do ponto de vista moral, nosso martírio significou, para os Minos e os Gasparis, uma fragorosa e contundente derrota, com a qual não se conformam até hoje. Por mais que eles nos tentem diminuir, somos muito respeitados pelas novas gerações, como os filhos do Brasil que não fugiram à luta.
Eu acrescentaria: salvando a honra do nosso país como os resistentes franceses salvaram a da nação deles. Nem uns nem outros fomos realmente vitoriosos, mas Jean Moulin e seus valorosos companheiros evitaram que a França ficasse para sempre identificada com o colaboracionismo do Marechal Pétain; e nós, que o Brasil ficasse identificado com os especuladores favorecidos pelo milagre econômico, tão escandalosamente eufóricos com sua prosperidade repentina quanto indiferentes ao festival de horrores que transcorria sob seus narizes.
Eu acrescentaria: salvando a honra do nosso país como os resistentes franceses salvaram a da nação deles. Nem uns nem outros fomos realmente vitoriosos, mas Jean Moulin e seus valorosos companheiros evitaram que a França ficasse para sempre identificada com o colaboracionismo do Marechal Pétain; e nós, que o Brasil ficasse identificado com os especuladores favorecidos pelo milagre econômico, tão escandalosamente eufóricos com sua prosperidade repentina quanto indiferentes ao festival de horrores que transcorria sob seus narizes.
Uma dor de cotovelo que atravessou as décadas explica a rancorosa cruzada movida em passado recente pelo Mino contra o perseguido político Cesare Battisti, sem nunca haver tido a dignidade de reconhecer que sua motivação real eram as antigas desavenças entre o (por ele) tão estimado Partido Comunista Italiano e os agrupamentos mais à esquerda.
A perseguição desmedida a Battisti só serviu para desmoralizar Mino |
No fundo, Mino continua até hoje furibundo com os revolucionários que confrontavam verdadeiramente a burguesia, enquanto o PCI traía suas bandeiras históricas, firmando um compromisso podre com a Democracia Cristã e ajudando a salvar o capitalismo.
Battisti era, para ele, um símbolo daquele repúdio generalizado ao aburguesamento do PCI. Incapaz de autocrítica, Mino não admite até hoje que o fracasso e decadência do partidão de lá se deveram exatamente aos conluios com os inimigos de classe, não à atuação dos autênticos que acertadamente repudiavam tais conluios (mas, levados ao desespero, acabaram incorrendo em excessos nefastos como o assassinato de Aldo Moro).
Gaspari, por sua vez, continua (tanto tempo depois!) furibundo com os autênticos de cá, por não nos termos resignado à impotência enquanto o PCB tentava civilizar a ditadura.
Longe demais das ruas e próximo demais dos gabinetes palacianos, o partidão brasileiro sonhava com os militares abdicando do poder em benefício de lideranças paisanas como o governador de São Paulo, Abreu Sodré.
Daí ter convencido Sodré a comparecer e até a discursar nas festividades do 1º de maio de 1968, quando acabou sendo escorraçado do palanque a pedradas pelos trabalhadores do ABC e Osasco, com o apoio do movimento estudantil.
O historiador vacilão não nos perdoa por termos atrapalhado os planos conciliatórios do PCB, na verdade quiméricos; naquele tempestuoso 1968, a linha dura militar acabaria prevalecendo de qualquer maneira sobre a turma do deixa disso!, nem que tivesse de forjar outras farsas como os atentados terroristas do guru maluco Aladino Felix (por ela controlado -- vide aqui).
Vale lembrarmos, p. ex., que o principal pretexto para a imposição do AI-5 adveio de um discurso sem a mínima importância que Márcio Moreira Alves proferiu, apenas para constar nos anais, numa sessão da Câmara Federal transcorrida às moscas. Sua diatribe inócua passaria totalmente despercebida se um jornalista de direita não a tivesse divulgado. E foi pra lá de exagerado o empenho da ditadura em cassar seu mandato. Tudo não passou de uma crise fabricada, enfim.
Mas Gaspari quer porque quer culpar-nos pela radicalização do regime, nem que tenha de fazer eco às mais imundas falácias das viúvas da ditadura. Os velhos rancores o desnorteiam.
O EPISÓDIO 'ALGOZ E VÍTIMA'
Gaspari teve de indenizar Dulce Maia por falsa acusação |
Foi assim que, em 2008, Gaspari assumiu as mágoas da vítima casual de um atentado contra o consulado estadunidense em São Paulo, ocorrido quatro décadas antes: Orlando Lovecchio Filho teve o azar de estar estacionando seu carro no Conjunto Nacional, em plena madrugada, quando explodiu um petardo lá deixado.
Indignado com a reparação que a Comissão de Anistia acabava de conceder a um suposto partícipe do atentado, Gaspari escreveu um folhetim lacrimoso sobre a diferença entre o montante a ele outorgado e o valor (inferior) recebido por sua suposta vítima.
A polêmica provocada por Gaspari terminou miseravelmente para ele (veja mais detalhes aqui):
- ficou esclarecido que o dito algoz (Diógenes Carvalho) não era algoz, pois acusado falsamente;
- Dulce Maia, também inocente da acusação que Gaspari lhe fez, processou-o e obteve vitória exemplar na Justiça;
- constatou-se que, além de errar a identidade de dois dos quatro autores do atentado, Gaspari também o imputara à organização errada (tinha sido uma ação da ALN, e não da VPR); e
- o único dos quatro ainda vivo lembrou haver sido processado por Lovecchio, vencendo a batalha jurídica por ter provado documentalmente que a perna do dito cujo não fora amputada em função do ferimento em si, mas sim porque a repressão ditatorial interrompera seu tratamento de emergência para interrogá-lo, só o devolvendo aos médicos quando a gangrena se estabelecera irreversivelmente.
Gaspari tinha duas opções:
- desqualificar resistentes que, em extrema inferioridade de forças, confrontavam uma ditadura atroz e, no caso específico, não pretenderam atingir ninguém, tanto que programaram o atentado para horário inóspito; ou
- soltar os cachorros contra um regime que arrancava um cidadão gravemente ferido de uma UTI por mera suspeita de que fossem um militante atingido pela própria bomba.
Ter escolhido o primeiro alvo diz muito sobre seu caráter.
Pior: omitiu a informação jornalisticamente mais importante de todo o episódio, aquela que comprovava a negação de socorro por parte de agentes do Estado. A responsabilidade das autoridades é sempre maior que a de particulares.
AGORA, UM DESCALABRO HISTÓRICO
Foi deplorável contrapor à passeata dos 100 mil um episódio tão menor |
O tiro pela culatra de 2008 não lhe bastou como lição: neste domingo (30), Gaspari voltou à carga, recriminando o esquecimento de um episódio menor (talvez por já ter saturado a todos, de tanto que foi explorado pela rede de propaganda ultradireitista) e contrapondo-o a outro infinitamente maior:
"No dia 26 de junho de 1968 aconteceram duas coisas. Às 4h30, de madrugada, o soldado Mario Kozel Filho, de 18 anos, estava na guarita de sentinela do QG do 2º Exército, no parque do Ibirapuera, e viu uma caminhonete C-14 vindo em direção ao portão do quartel. Desgovernada, ela parou num muro. O soldado foi ver o que era, e a C-14, com 50 quilos de dinamite, explodiu e matou-o. Horas depois, numa bela tarde do Rio, a passeata [dos 100 mil] saiu pela avenida.
Seis meses depois o governo baixou o AI-5, ninguém foi para a rua, e o Brasil entrou no seu pior período ditatorial. Não foi a passeata que levou a isso. Ela era o fim de um ciclo. A bomba e o interesse do governo em subverter a precária ordem constitucional da época foram o início de outro.
...Festejando-se a memória da passeata, varreu-se para baixo do tapete a lembrança de um erro catastrófico. Passaram-se 45 anos e centenas de pessoas que participaram de atos terroristas se maquiaram como combatentes da causa democrática. Lutavam contra uma ditadura, em busca de outra, delas".
Esta ação, sim, foi da VPR. E no Congresso de Mongaguá, em abril/1969, a organização decidiu nunca mais reagir de forma tão pueril às provocações do inimigo (um comandante militar, em declarações à imprensa, qualificara os resistentes de covardes, desafiando-os a irem enfrentá-lo como homens no seu quartel).
Tais demonstrações de força foram, dali em diante, vetadas, tanto que a VPR se negou a fornecer a um grupo menor a dinamite por ele solicitada para mandar pelos ares a estátua do Duque de Caxias no Dia do Soldado de 1969.
A morte de Kozel constituiu-se mesmo num erro catastrófico, até porque o recruta incidentalmente atingido não passava de um pobre coitado. Mas, nem de longe teve a importância que Gaspari lhe atribui, praticamente colocando-a no mesmo plano da maior e mais emblemática manifestação de protesto contra a ditadura dos generais.
Quando os cidadãos pegam em armas para confrontar tiranias, invariavelmente ocorrem incidentes deste tipo. A Resistência Francesa, p. ex., errou muito mais do que a brasileira, sem que a ninguém ocorra jogar-lhe isto na cara. Os franceses são gratos a quem correu riscos e se martirizou por eles.
Outro pretexto para o AI-5 |
Quanto à presunção de que a ditadura entrou no seu pior período por causa de uns poucos atentados que passavam quase batidos quando as massas contestavam o arbítrio nas ruas, trata-se de uma falácia que Gaspari tomou emprestada das viúvas da ditadura, sempre à procura de atenuantes para os massacres e atrocidades do regime militar.
A ordem, na verdade, foi inversa: a partir do interesse do governo em subverter a precária ordem constitucional da época, foram pinçados, aqui e ali, pretextos para submeter o país ao totalitarismo absoluto. Tudo serviu: os atentados realmente cometidos pela esquerda, os que a própria ditadura forjou, o discurso incauto de Márcio Moreira Alves e a recusa do Congresso em entregar sua cabeça, uma reportagem de capa famosa da revista Veja denunciando as torturas, etc.
E, com o Brasil praticamente sob estado de sítio, só restou aos resistentes o caminho da luta armada, cujas fileiras, até então numericamente insignificantes, foram em muito ampliadas, recebendo centenas de militantes antes dedicados ao trabalho de massas. Consequentemente, o que era secundário, quase irrelevante, em 1968, passou para o primeiro plano em 1969.
Outra falácia que Gaspari tomou emprestada dos Ternumas da vida é a de que os resistentes lutávamos por outra ditadura. Historiador relapso, ele esquece que havia de tudo entre nós, inclusive católicos indignados com os pecados da repressão e dignos defensores da legalidade constitucional, passando por um sem-número de tendências da esquerda. O único ponto em comum era o repúdio à ditadura.
Nós, da VPR, acreditávamos que, no day after, seria criado um parlamento com a participação de todos os agrupamentos que haviam combatido o regime militar, para a definição das politicas a serem adotadas. Tínhamos clara consciência de que, inexistindo uma força dominante, as decisões deveriam ser consensuais, jamais impostas, para não haver risco de cedermos a tentações autoritárias.
Finalmente, as perguntas que não querem calar:
- por que Gaspari nos execra tanto por supostas e não concretizadas intenções, havendo uma infinidade de crimes efetivamente cometidos e provados, um número tão elevado de ações genocidas e hediondas da ditadura para ele deplorar?
- por que Gaspari se escandalizou tanto com dois episódios infelizes que para nós representaram exceções, se as torturas foram sempre regra para a ditadura e as execuções de prisioneiros indefesos também viraram regra, a partir de 1971? Uma ou outra situação que fugiu do controle deve ser mais recriminada do que massacres sistemáticos, levados a cabo como uma política de Estado?
Guiado por suas frustrações, Mino Carta fez patética figura durante o Caso Battisti; e Elio Gaspari se desmoraliza cada vez que lança suas catilinárias contra os resistentes que pegaram em armas, invariavelmente acabando por ecoar, como papagaio, a mais rançosa retórica da extrema-direita.
Ambos deveriam procurar catarse no divã do analista, não no teclado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário