sábado, 10 de abril de 2010

SÓCRATES: BOM DE BOLA, DE BISTURI E DE TECLADO

Certa vez perguntaram a George Foreman se Muhammad Ali tinha sido mesmo o maior boxeador de todos os tempos.

Big George
deu uma resposta antológica: "Ele foi, certamente, o melhor cidadão que já lutou boxe".

Pois é muito difícil, dada a diferença de estilos e épocas, fazer uma comparação rigorosa entre gigantes como Muhammad Ali e Joe Louis, p. ex.

Mas, não houve pugilista nenhum capaz de abrir mão de um título cobiçadíssimo e de muitos milhões de dólares em razão de suas convicções. E foi isto que Muhammad Ali fez, ao recusar-se a servir como relações-públicas de uma guerra injusta.

Ao convocarem-no para servir no Vietnã, os militares jamais cogitaram a hipótese de expô-lo ao fogo inimigo. A morte de um ídolo do esporte teria efeito moral catastrófico.

Fizeram chegar ao seu conhecimento que precisavam dele apenas para ações de propaganda -- como as do comediante Bob Hope, que deu espetáculos para animar as tropas estadunidenses na II Guerra Mundial e também nas da Coréia, Vietnã e Golfo.

Ali não aceitou o papel infame de incentivar homens a morrerem por vagos objetivos geopolíticos dos dirigentes de seu país. Disse que os guerrilheiros vietnamitas jamais o haviam tratado com desprezo por ser negro ("No vietcong ever called me nigger").

O doutor Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira é da mesmíssima estirpe.

Sabe-se lá se foi melhor futebolista do que Cruyff, Platini, Zico, Falcão e outros gênios de sua geração. E, claro, não chegou ao patamar de um Puskas, de um Pelé, de um Garrincha, de um Maradona.

Mas, não há dúvida de que foi o melhor cidadão que já jogou futebol.

Era a alma da democracia corinthiana, uma iniciativa sem precedentes num esporte dominado, de forma canhestra e autoritária, pelos vis cartolas.

No Corinthians, o grupo de jogadores tinha opinião e peso preponderantes.

Decidiu, p. ex., que as concentrações antes dos jogos eram desnecessárias; ao mesmo tempo, os atletas zelavam para que nenhum deles desmerecesse o voto de confiança recebido, excedendo-se em suas noitadas.

E Sócrates também admitiu dispensar uma fortuna em nome de seus ideais, ao comprometer-se solenemente, com um milhão de manifestantes pelas diretas-já no Anhangabaú (SP), a recusar a oferta estratosférica da Fiorentina se a emenda Dante de Oliveira fosse aprovada.

Preferia dar sua contribuição pessoal à redemocratização do Brasil do que jogar a peso de ouro na Itália.

[Mas, os parlamentares brasileiros, em sua maioria, não mostraram idêntico desprendimento. Preferiram negar a democracia ao povo e, depois, receberem as recompensas de praxe, quando elegeram Tancredo Neves pela via indireta.]

Para completar, Sócrates é também o cidadão mais intelectualizado e articulado que já jogou futebol.

É o que se constata, p. ex., nesta sua belíssima coluna para a CartaCapital: O craque e Barcelona.

Nem mesmo os jornalistas do metiê (com exceção do recem-falecido e já saudoso Armando Nogueira) seriam capazes de relacionar com tamanha perfeição os fatores sociais, políticos, culturais, urbanísticos e esportivos que fazem de Barcelona a cidade ideal para propiciar a afirmação de futebolistas estrangeiros, catapultando vários deles a melhores do mundo na temporada.

Como articulista e cronista, tiro o chapéu para Sócrates: a ele confiro, com prazer, o tratamento de colega.

Eis os trechos mais marcantes de O craque e Barcelona:
"...melhor jogador do planeta. O ainda garoto Lionel Messi está fazendo uma temporada de 'sonho'... Algo que já ocorreu mais de uma vez desde que esse título foi instituído. Não à toa. O catalão é um povo sofrido que até hoje busca a plena independência. Barcelona, sua capital, é motivo de orgulho. Estando na costa do Mediterrâneo, soube crescer de forma ordenada a partir de um plano piloto concebido em meados do século XIX, cujo objetivo era aproximar as aldeias ao redor a partir da derrubada das barreiras medievais que ali existiam. Imaginação, criatividade, talento e loucura são alguns dos adjetivos que poderiam muito bem definir aquele que é um símbolo da cidade, o arquiteto Antonio Gaudí...

"Por falar em imaginação e criatividade, aqui estão a alma e a essência do que deve ser o bom futebol. E estes são atributos que não faltam ao jovem Messi, que vem sendo nesta temporada a própria expressão do que chamamos 'beleza e alegria' desse esporte. São qualidades extremamente valorizadas pelo povo catalão, que não mede esforços para demonstrar o quanto se sente feliz em ter entre sua gente talentos como o do argentino. E sempre foi assim. Muitos dos últimos agraciados como melhores do mundo vestiam a malha do Barcelona quando da escolha. Inclusive Romário, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho. (...) E é essa energia contagiante do catalão que permite que gênios como esses citados possam exprimir totalmente a sua arte em uma região onde também nasceu ou cresceu a genialidade de Picasso, Joan Miró e muitos mais.

"...o dia nacional [da Catalunha] celebrado em 11 de setembro é para lembrar mais uma derrota e onde a festa e a dança (La Sardanha) são intimistas ao extremo, contrastando com a euforia e a felicidade de outros povos e culturas. Uma história de dor, perdas e frustrações que, em vez de transformar o catalão em derrotista e cabisbaixo, o tornou mais forte e altaneiro.

"No estádio, per supuesto, o que mais vemos é a exaltação à arte dos mais qualificados. É o assombro coletivo empurrando o talento ladeira abaixo na velocidade necessária para que ele desabroche em toda a sua plenitude, para delírio da massa sedenta por essa beleza que o futebol nos oferece quando livre das amarras impostas por mentes menos arrojadas e reacionárias. É o êxtase da liberdade e da criatividade. É o sorriso da ingenuidade de quem só quer acompanhar o desfilar da arte em sua mais profunda interpretação. São manifestações incontroláveis que denotam a total expressividade da emoção que toma conta de todos que entrelaçam as mãos em torno do clube do coração – que, mais que um time ou equipe, representa um povo e sua saga histórica.

"...[e, sobre o Barcelona não vender espaços na sua camisa, mas nela estampar o símbolo da Unicef] Um gigantesco exemplo de como é possível viver em um mundo essencialmente comercial, mantendo preservada a sensibilidade humana. Sensibilidade essa que transparece na fronte e nos pés habilidosos de jogadores como Messi..."

4 comentários:

Haroldo M. Cunha - São Gonçalo/RJ disse...

Ainda lembrando: ele está em uma música do Gilberto GIl, que me foge o nome agora.

Haroldo M. Cunha - São Gonçalo/RJ disse...

Celso, em escala um pouco menor, dadas as cisrcunstâncias, Afonsinho exerceu um papel parecido com o Sócrates, só para lembrar de uma pessoa que ousou discrdar em uma época perigosissima (você sabe melhor do que eu) para essas coisas.

Anônimo disse...

Catalunha revolucionária...

Catalunha de 1936..

Anônimo disse...

Reinaldo do Atlético Mineiro teve momentos interessantes como cidadão e esportista.

Pagou um preço alto.

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