"A data do processo [na Câmara de Instrução da Corte de Apelação de Paris, em 2004] foi finalmente marcada para 30 de junho e tornada pública. Entrementes, tinha-se constituído na embaixada um núcleo de profissionais italianos, especialistas em táticas de propaganda. No dia seguinte, esse núcleo abriu fogo para reverter a opinião pública. Seus membros operaram com uma eficácia e uma força impressionantes. Tinham tido tempo suficiente para dispor seus franco-atiradores em todos os pontos estratégicos: imprensa, magistratura, lóbis políticos, associações de vítimas, arrependidos chamados de vlta à ativa, todos os terrenos estavam cobertos. A campanha de intoxicação estava começando, iria prosseguir sem trégua até o veredito.
"Para a imprensa francesa, inclusive para a parte da imprensa que de início denunciara a injustiça, tornei-me da noite para o dia um impiedoso assassino. Eu agora já não aparecia nas páginas da Justiça, e sim nas do terrorismo, ao lado do próprio Bin Laden. Eu não podia acreditar. Afora umas corajosas exceções, os jornais que até então tinham me defendido estavam todos cirando a casaca e me acusando. Todos com a mesma linguagem, os mesmos bordões, os mesmos termos, ou seja, a mesma fonte.
"Fred Vargas e seus amigos se mobilizavam feito loucos para conter a avalanche, mas seus esforços eram como uma gota d'água num mar em tempestade. Quando lhes davam oportunidade de dizer uma palavra, (...) os adversários imediatamente preenchiam as páginas do mesmo jornal com suas versões fantásticas. Versões tão delirantes e incoerentes que constituíam um insulto ao bom senso do leitor, caso este pudesse dispor de algum outro meio para se informar.
"Eles tinham conseguido estraçalhar a Doutrina Miterrand, aquele antigo compromisso da França que protegia os refugiados italianos de qualquer extradição. A palavra do antigo presidente da República, que empenhara a honra da França, era apresentada, de forma mais ou menos velada, como a de um protetor de criminosos.
"Os comitês de apoio, entretanto, não recuavam, e os adversários consequentemente modificaram sua estratégia. Abandonaram o campo político, deixaram de utilizar expressões como 'refugiados', 'extraditáveis' ou 'exílio' para dirigir mais especificamente seus ataques ao homem. Já não se tratava de 'palavra dada', mas de mim. Um mero assassino de direito comum cuja cabeça era pedida pela Itália.
"Na ocasião, trouxeram novamente para a linha de frente aquele procurador italiano [Armando Spataro que, segundo Battisti, estaria agora fornecendo ao juiz Wálter Maierovitch subsídios para sua coluna na Carta Capital], bastante comprometido com os horrores da repressão judiciária que devastara a Itália dos anos 1980. Esse homem, que poderia dar aula aos carrascos das ditaduras sul-americanas da época, foi recebido de braços abertos pela grande imprensa francesa, que publicou fartamente os seus discursos, sem nunca assinalar o seu envolvimento pessoal nos meus processos, conduzidos em minha ausência. Nos programas de televisão, pronunciava o termo 'assassino' a cada duas palavras, quantas vezes fossem necessárias para incuti-lo profundamente na cabeça dos espectadores. Fazia-se acompanhar por membros das famílias das vítimas da época. Só foi preciso um ministro italiano prometer publicamente 'indenização para todas as vítimas de Cesare Battisti' para que aqueles coitados aceitassem se expor em público como fizeram. A essas famílias que falavam de mim sem me conhecer, repetindo palavras que tinham colocado em suas bocas, peço perdão pela dor e pelo luto que elas sofreram. Mesmo não tendo atirado em ninguém, sinto-me politicamente responsável pelo que aconteceu com elas.
"O nível mais ignominioso da imprensa marrom tinha sido atingido. Doravante, Cesare Battisti, o monstro, tinha feito de tudo. Eu me tornara, a uma só vez, o 'ideólogo', o 'fundador', o 'organizador' e o 'executor' de todas as ações assinadas pelo grupo dos PAC [Proletários Armados para o Comunismo, um dos cerca de 400 grupos que pegaram em armas contra o Estado italiano nos anos de chumbo].
"A martelação midiática apelava para antigos figurões do ex-PCI [Partido Comunista Italiano]. Vinte e cinco anos depois, a Itália ainda queria salvar as aparências, soterrar no esquecimento suas bombas e golpes de Estado, apagar a realidade dos anos de chumbo que seus governantes ainda se negavam a admitir, qualquer que fosse a verdade da História. Os homens do ex-PCI, sempre a postos e que tinho sido tão aplicanos nos anos da repressão brutal, se irritavam com os que explicavam que um imenso conflito social havia devastado o país. Não, travava-se apenas de um punhado de assassinos que se atreviam a desacreditar a intocável democracia italiana (...). Unidas em sua submissão a Berlusconi, do antigo PCI à extrema-direita, a Itália reclamava os seus antigos rebeldes como exemplo, e para que eles afinal se calassem."
(trechos de Minha Fuga Sem Fim, de Cesare Battisti, publicado em 2006 na França e lançado em 2007 no Brasil pela Martins)
3 comentários:
Toffoli poderá votar no caso Battisti caso assuma vaga no STF antes de julgamento
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u625214.shtml
É triste que talvez a Justiça venha a ser feita graças a tais acasos, quando o caso é de uma clareza cristalina.
Mas acho que a probabilidade do Toffoli não votar é bem maior: primeiro por achar mais conveviente não participar da votação; segundo porque o mais provável é que não tenha sido empossado até lá - deve-se levar em conta que os Senadores de direita podem enrolar justamente para que ele não seja empossado a tempo.
E terceiro e não menos importante: nada garante que o voto dele seria contra a extradição. Toffoli já deu mostras de posições conservadoras ultimamente.
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