O Conselho Nacional para Refugiados Políticos não considerou como tal o italiano Cesare Battisti, deixando o caminho desimpedido para o Supremo Tribunal Federal determinar sua extradição, o que dificilmente deixará de fazer.
Bem vistas as coisas, entre ele e a pena de 30 anos de detenção – praticamente uma condenação a morrer na prisão, para um homem que está chegando aos 53 anos de idade e tem levado uma vida de muita dor e sofrimento – só existe, agora, uma possibilidade de salvação: a decisão final do ministro da Justiça Tarso Genro, a quem Cesare Battisti tem o direito de (e tudo indica que vá) apelar.
É um caso em que a frieza da Lei conflita com o espírito de Justiça, que inspira ou deveria inspirar nossas ações neste sofrido planeta.
Com vinte e poucos anos, Cesare Battisti pertenceu a um grupelho de esquerda radical na Itália, versão em miniatura das famosas Brigadas Vermelhas.
Havia uma imensa frustração entre os idealistas que tentaram e não conseguiram mudar o mundo, em 1968 e anos subseqüentes.
Nos países prósperos da Europa, parecia mesmo que, como o filósofo Herbert Marcuse escrevera, a combinação de uma situação de conforto material com a atuação atordoante dos meios de comunicação de massa fechara totalmente as brechas através dos quais os homens poderiam chegar ao pensamento crítico.
Então, na segunda metade da década de 1970, uns poucos tentaram abrir novas brechas com dinamite.
Foi um terrível e trágico erro histórico.
Por mais impermeáveis às mudanças que se apresentem em determinado momento, as democracias dão espaço a quem quer convencer a cidadania de que a realidade pode ser alterada para melhor.
O jeito é, pacientemente, perseverar no trabalho de formiguinha, até que a situação mude.
A teoria do homem unidimensional de Marcuse (bem como a do fim da História de Fukuyama, que veio depois) dissecava com precisão cirúrgica o momento que a produziu, mas não levava em conta a dinâmica da História, que teima em direcionar-se para novos e surpreendentes caminhos.
P. ex., a recessão que fustigará a economia mundial em 2009 (e sabe-se lá mais quanto tempo) e as catastróficas conseqüências das alterações climáticas (que já começam a nos assolar) ensejam novas possibilidades de atuação aos que querem despertar a consciência coletiva para o fato de que o capitalismo hoje ameaça a própria sobrevivência da espécie humana.
A sofreguidão, entretanto, tornou-se uma tendência avassaladora no mundo moderno.
Muito mais entre os jovens.
E mais ainda entre os idealistas, que exasperam-se por terem uma visão muito nítida das mazelas do seu tempo e de como poderiam ser erradicadas, mas se chocam com a indiferença e o egoísmo da maioria bovinizada.
Battisti, jovem e idealista, acreditou que devesse trilhar um desses atalhos para a transformação da sociedade, já que a estrada principal estava bloqueada. Pagou caríssimo por isto.
Depois que as Brigadas Vermelhas tomaram a decisão inaceitável e inqualificável de executar Aldo Moro, criou-se um estado de ânimo fascistóide na Itália.
Semelhante, p. ex., aos que levaram os EUA a lincharem pelas vias legais tanto Sacco e Vanzetti quanto o casal Rosemberg, cujas inocências saltavam aos olhos e clamavam aos céus.
Foi em processo deste tipo, no qual se registraram verdadeiras aberrações jurídicas em detrimento dos réus, que Cesare Battisti acabou condenado por quatro homicídios cuja autoria ele nega.
Fugiu e leva existência de judeu errante há quase três décadas, perseguido, acossado, finalmente preso.
Constituiu família, escreveu livros, reconstruiu-se, bem ao contrário dos que preferiram seguir o rumo insensato até o mais amargo fim, como Carlos, o Chacal.
Hoje, é um homem que, livre, não faria mal a uma mosca. Poderia, finalmente, viver em paz com seus entes queridos e continuar exercendo brilhantemente sua atividade literária.
Que verdadeiro benefício a sociedade tirará do seu encarceramento por 30 anos, ou até a morte? Nenhum. O olho por olho, dente por dente pertence à pré-História da humanidade.
Mas, Battisti se debate numa dessas armadilhas da História, sem saída pelos caminhos legais.
Não cabe ao Brasil questionar a lisura da Justiça italiana ou o rancor vingativo com que a direita de lá, ao assumir o poder, exumou um caso esquecido e passou a perseguir implacavelmente um homem que não incomodava mais ninguém.
É em nome da clemência, dos sentimentos humanitários e do seu próprio passado idealista que Tarso Genro terá de agir, para salvar Cesare Battisti.
Quando Salvador Allende assumiu o poder no Chile, afirmou à militância que, para ela, jamais seria Sua Excelência, o Presidente, mas sim o Companheiro Presidente. Morreu cumprindo a palavra.
Que Tarso Genro agora decida o que é mais importante para ele: ser Sua Excelência, o Ministro ou o Companheiro Ministro.
Nem sequer precisará sacrificar a vida para tomar a única decisão digna no seu caso. Só arriscará o cargo.
P.S.: O COMPETENTE JORNALISTA RUY MARTINS, QUANDO ESTE ARTIGO JÁ ESTAVA ESCRITO E DIVULGADO, LEMBROU QUE HÁ UMA POSSIBILIDADE A MAIS PARA CESARE BATTISTI, QUAL SEJA O APELO AO PRESIDENTE LULA, DEPOIS DA PROVÁVEL DECISÃO NEGATIVA DO STF. FAÇO O REGISTRO. MAS, SERÁ MUITA INGENUIDADE ACREDITARMOS QUE LULA POSSA VIR A CORRIGIR UMA INJUSTIÇA DO SUPREMO NUM ASSUNTO EM QUE SEU VIÉS TEM SIDO (POR CONVICÇÃO, OPORTUNISMO OU PAÚRA) DOS MAIS REACIONÁRIOS.
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