sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O APOLLO NATALI QUE EU CONHECI – 1

Subestação da Light no Bixiga, em 1934
Como diria o Caetano Veloso, em 1936 o Apollo Natali nasceu, bem na barriga da miséria (o bairro da mãe do seu pai, a vovó do Bixiga), conforme contou numa crônica:
"Convivi com a italianada de um punhado de cortiços na fronteira entre o Brás e a Mooca, em São Paulo, nas ruas Coronel Cintra, rua da Mooca, Caetano Pinto, Carneiro Leão.  
Eu mesmo vivi 33 anos, desde bebê, num cortiço na Mooca, na rua Coronel Cintra, 129, habitado por 20 famílias de ruidosos italianos e suas briguentas crianças. Minha meninice lá foi marcada pela música Marechiare, pelo rádio de Tzi Terê e vozerio de Gino Bechi"
Depois, mudou-se para o bairro da avó materna, a vovó do mato, onde passava temporadas na meninice e onde passaria o resto dos seus anos:
"Vila Ré é o nome do bairro de subúrbio onde moro, na zona Leste paulistana... 
Quando eu era menino, tinha trem de verdade, puxado pela Maria Fumaça. Ia gente no telhado e em cima da lenha da locomotiva. Tempos livres aqueles. Viajava-se de janelas abertas nos vagões de madeira e muitos iam no trem sem pagar. O preço da passagem não aumentava nunca...  
Era tudo mato. Uma casinha aqui outra ali,  alguns índios, tanto tempo faz. Árvores para seis homens abraçar, tanto cheiro  de capim. Às cinco horas da tarde todo mundo se recolhia. Dava medo o escurecer sem ninguém".
Maria Fumaça? Sem dúvida...
A família, imensa. "O vovô  e a vovó do Bixiga tiveram 24 filhos. O vovô e a vovó do mato tiveram 17."

Naquele tempo os pais botavam os meninos para trabalhar desde muito cedo. E o Apollo, nas suas andanças pela cidade (se bem me lembro, fazia entregas de pequenos volumes), certa vez conheceu a velha redação de O Estado de S. Paulo na rua Major Quedinho. 

Ficou fascinado, até porque havia vendido jornais pelas ruas durante muito tempo (também fora engraxate). Com talento precoce para a escrita, decidiu que era aquilo que queria ser na vida.

Foi se aproximando, oferecendo serviço, mostrando textos. Deram-lhe algumas reportagens fáceis para o testarem. E foi ficando, quebrando galhos, preenchendo lacunas.

Acabou incorporado à equipe da edição de Esportes do Jornal da Tarde, que saía às segundas-feiras e era uma grande atração do então florescente vespertino. Mas sem registro, embora recebesse uma remuneração mensal. Coisas do capitalismo.

Pobretão, humilde, afável, dedicado, era o colega que todos tinham vontade de ajudar. E a oportunidade de efetivá-lo que surgiu era daquelas que ninguém recusaria: cobrir o circo da Fórmula 1, indo de país em país para descrever os preparativos de cada etapa, as provas em si, as coletivas no encerramento. 

Seria um presente dos céus para qualquer um, menos para o Apollo. A ideia de ficar longe dos pais e da família enquanto perambulava pelo mundo como um cigano o horrorizou. Deixou a chance passar.

Gostava mesmo é do batente de redação. Lembrava com orgulho que, quando as tropas do general golpista Olympio Mourão Filho começaram a se movimentar em direção ao Rio de Janeiro no 31 de março de 1964, foi o primeiro a ler o despacho do correspondente do Estadão em Juiz de Fora e, de imediato, se deu conta da importância da notícia: foi entregá-lo diretamente nas mãos do dr. Júlio [de Mesquita, o patrão], avaliando que a urgência o autorizava a não respeitar os degraus hierárquicos.
A sede antiga do Estadão

Fundada a Agência Estado em 1970, finalmente se tornou jornalista com carteira assinada, fazendo exatamente o que queria e amava. Mas, com o tempo iria caindo na real. Nem a pena movia montanhas amiúde, nem apenas o bom desempenho conduzia alguém sem protetores influentes ao topo da profissão.

Uns 17 anos depois, caiu-lhe a ficha de que seu trabalho na sub-chefia (abaixo apenas do chefe da redação, Sircarlos Parra Cruz) lhe rendia apenas uma merreca a mais do que ganhavam os redatores comuns e o obrigava a esticar o expediente por várias horas que não eram pagas.

Pediu aumento e, quando mesquinhamente lhe negaram, optou por abrir mão da sub-chefia e receber um pouco menos para ter muito mais tempo livre. Mas, não era a solução que almejara. Suas mágoas ainda eram grandes quando o conheci, em 1988.

Foi um caso de amor à primeira vista... pelos textos que escrevi no processo de seleção. 

Incumbido da escolha do melhor candidato, o Apollo decidiu por mim. E, quando houve resistências em função do meu passado de antigo guerrilheiro, ele (ainda sem me conhecer) afiançou que isto não causaria nenhum problema. Só vim a saber muito tempo depois.

Tornamo-nos amigos, algo previsível em função das muitas afinidades que tínhamos, como jornalistas e como pessoas. Inclusive a de ele ser kardecista e eu ter passado uns seis anos da minha meninice frequentando um centro espírita com minha mãe. Então, mesmo tendo deixado as religiões de lado, eu entendia os papos dele sobre o espiritismo e podia trocar ideias com conhecimento de causa.
Quando estava prestes a estrear A última tentação de Cristo, que causara muitas polêmicas pelo mundo, eu recebi convite duplo para a pré-estréia, pois continuava escrevendo sobre cinema para algumas revistas. 

Levei o Apollo e percebi que lhe deu enorme satisfação conhecer aquele círculo sofisticado e poder depois conversar com os colegas da redação sobre um filme que ainda não estava em cartaz e ninguém assistira. 

Era singela sua reação, um homem vivido, 15 anos mais velho do que eu, que se fascinava com aquilo que para mim virara rotina há muito tempo. Tal encantamento de menino, fui percebendo, era uma característica sua, daí ser um homem que estava quase sempre de bem com a vida, espalhando boas vibrações ao seu redor.
(continua neste post)

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