terça-feira, 26 de junho de 2018

RIO DE JANEIRO EM TRANSE: A 6ª FEIRA SANGRENTA E A PASSEATA DOS 100 MIL – 2

(continuação deste post)
"DE UM LADO, CASSETETES E CHUTES DE COTURNO. DO OUTRO, BOLINHAS DE GUDE DERRUBANDO CAVALOS" – O vendaval parisiense chegou ao Brasil principalmente por via de influência da contracultura, mas, segundo o historiador e ex-militante estudantil Daniel Aarão Reis, não teve impacto no que se viu nas ruas do Rio de Janeiro em junho. “O alvo principal do movimento estudantil em 1968 era a política educacional do governo e a reivindicação por mais verbas era algo bem distante do que acontecia em Paris”, diz Aarão Reis.
6ª feira sangrenta: manifestantes enfrentando a repressão com paus e pedras.


Contudo, como Ventura lembra em seu livro, se as mobilizações francesas não foram determinantes para o ano brasileiro, “Costa e Silva, patético, prometia: ‘Enquanto eu estiver aqui, não permitirei que o Rio se transforme em uma nova Paris”. A declaração do presidente militar é de 12 de junho e, passada apenas uma semana, no dia 19, 4ª feira, foi dado início aos acontecimentos que levaram até a 6ª feira sangrenta, 21.

Tudo começou com um grupo de estudantes que foi ao Ministério da Educação, então no Rio de Janeiro, para expor as pautas do movimento estudantil. A iniciativa terminou em repressão policial, que, pela primeira vez, foi respondida também com violência e não apenas com dispersão. 
Palmeira: "Batemos na polícia pela primeira vez"

“Quando a polícia veio, naquele passo terrível, largo, aqueles passos de ganso, resolvemos resistir. Batemos na polícia pela primeira vez”, lembra Vladimir Palmeira, então presidente da União Metropolitana dos Estudantes, no mesmo Memória do Movimento Estudantil

O que se seguiu foram horas de perseguição e enfrentamento. De um lado, cassetetes e chutes de coturno. Do outro, bolinhas de gude derrubando cavalos.

Já no dia 20, 5ª feira, cerca de 400 estudantes foram presos após uma assembleia geral no Teatro de Arena da Faculdade de Economia. No campo do Botafogo, eles foram enfileirados e humilhados. “A descrição de soldados urinando sobre corpos indefesos ou passeando o cassetete entre as pernas das moças, junto às imagens de jovens de mãos na cabeça, ajoelhados ou deitados de bruços com o rosto na grama, eram uma alegoria da profanação”, escreve Ventura. 

O que começou com a morte de Edson Luís, quando uma questão universitária relativa ao restaurante Calabouço cresceu para além das assembleias estudantis, ficou ainda mais intenso após os dias 19 e 20.
Aí, então, veio a 6ª feira sangrenta. “Nesse dia, o Rio não ficou nada a dever à Paris das barricadas – e não por mimetismo, como temiam as autoridades militares. A motivação estava aqui mesmo”, escreve Ventura. 

Tudo teve início com um pequeno protesto, às oito da manhã, na praça Tiradentes, centro da capital carioca, contra os eventos de 4ª e 5ª feira; e acabou se transformando numa batalha de cerca de 12 horas, em plena avenida Rio Branco.

Quando a repressão policial chegou, já depois do horário do almoço, a população tomou partido e começou a jogar objetos das janelas contra os policiais. Tudo começou com alguns gelos arremessados, até que passaram a cair máquinas de escrever, garrafas, cinzeiros, cadeiras e vasos de flores. 

“Participei como cidadão comum naquele dia, em que foi possível ver de tudo: de carros da polícia virados até garotos montando cavalos, com capacetes de policiais militares caídos, galopando pelas ruas centrais da cidade” relembra Aarão Reis. 

Para ele, aquele momento, em que a população apoiou os estudantes espontaneamente, é uma marca da insatisfação que parte da classe média vinha mostrando com os rumos econômicos e autoritários da ditadura. “Eram setores que acreditavam que 1964 seria apenas uma operação cirúrgica destinada a varrer os comunistas e trabalhistas”, diz.
Junho de 1968, depois da 6ª feira sangrenta, ficaria definitivamente marcado como o mês das grandes mobilizações de rua. Cinco dias depois, em 26 de junho, aconteceu a famosa passeata dos 100 mil, que reuniu estudantes, artistas, intelectuais, religiosos e população em geral para protestar contra as violências da ditadura.

As fotografias desse dia, muitas feitas também por Evandro Teixeira, que registrou a 6ª feira sangrenta, são simbólicas. Numa imagem, aparecem Caetano Veloso, Gilberto Gil, Vinícius de Moraes, Paulo Autran, José Celso Martinez… 

Noutra um estudante, numa das foto mais conhecidas do período, picha: Abaixo a ditadura nos muros do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Dessa vez, a resposta do regime militar não viria nas ruas, mas em um processo de recrudescimento cada vez maior que acontecia nos corredores de Brasília. 

“Já no segundo semestre, sem forças, os movimentos começaram a declinar. O estouro do 30º Congresso da UNE, em outubro, só fez consolidar a curto prazo, este declínio”, diz Aarão Reis.

Junho de 1968 foi o ápice do movimento, a 6ª feira sangrenta o momento mais próximo de uma insurreição popular e a passeata dos 100 mil uma amostra irrefutável do descontentamento geral contra a ditadura. 

A partir de junho, contudo, as coisas esfriaram. O movimento estudantil debatia próximos passos internamente e a repressão avançava. Em outubro, como relembra Aarão, um congresso da UNE, em Ibiúna, interior de São Paulo, foi invadido pela repressão e os principais líderes estudantis presos. Alguns falam em até 900 presos. Todos seriam fichados no Dops, a polícia política do regime.

As mobilizações do Rio de Janeiro não foram um caso isolado naquele ano. P. ex., no próprio segundo semestre, em outubro também, houve a conhecida batalha da rua Maria Antonia, em São Paulo, quando estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP entraram em confronto com os do Mackenzie, apoiados pelo Comando de Caça aos Comunistas. 

Na verdadeira guerra campal que se abriu na rua, que abrigava as duas universidades, um estudante morreu.

Em Brasília e Belo Horizonte, as universidades federais também foram palco de movimentações estudantis e invasões militares, em diferentes meses do ano. 

E o movimento sindical, embora enfraquecido na época, também se mobilizou, tendo ocupado fábricas na cidade mineira Contagem, em abril, e na paulista Osasco, em julho.

“Tudo tinha uma marca forte de improvisação, era um processo muito embrionário de mobilizações. A rigor, todos estes movimentos, embora apresentando aspectos novos, devem ser vistos, quando a gente pensa neles em conjunto, como um último sopro dos processos sociais mais densos que se verificaram antes de 1964”, diz Aarão Reis. 

O AI-5 colocaria todos na ilegalidade, a UNE continuaria seu trabalho sempre na clandestinidade e a luta armada surgiria como opção contra um regime que, como visto em junho, sofria de impopularidade em diferentes setores da sociedade.

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