Por Pablo Ortellado |
Hoje, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal deve decidir se o presidente Michel Temer pode extraditar para a Itália Cesare Battisti. Em 2010, o governo brasileiro concedeu a Battisti a permanência no país, reconhecendo que era perseguido pelo governo italiano.
Pressionado pela Itália, Temer quer agora rever a decisão.
Battisti foi condenado pela Justiça italiana, acusado de matar quatro pessoas no final dos anos 1970, no contexto da luta armada. Ele nega qualquer participação nos crimes.
Sua prisão, fuga, julgamento e as pressões feitas pela Itália para o seu retorno ao país são um longo imbróglio político e jurídico que envolve questões como o direito ao refúgio, o respeito ao devido processo legal e a maneira como a Itália lidou com a luta armada dos anos 1970, período que ficou conhecido por lá como os anos de chumbo.
Battisti fazia parte de um agrupamento de extrema-esquerda, os Proletários Armados pelo Comunismo, que assumiu a autoria das ações que resultaram nas quatro mortes em 1979. Num primeiro julgamento dos assassinatos, Battisti não foi nem sequer considerado suspeito pelas mortes, tendo sido preso, no período, por outros crimes, como assalto e receptação de armas.
Em 1981, Battisti fugiu da prisão para a França, depois para o México e novamente para a França. Em 1990, se estabeleceu neste último país por meio da chamada doutrina Mitterrand que determinava que a França daria abrigo a ativistas políticos italianos que renunciassem ao uso da violência.
Mitterrand quis salvar italianos da caça às bruxas que sofriam |
Quando já estava abrigado na França, Battisti foi acusado por seus antigos companheiros de ser o autor das quatro mortes. Tudo indica que eles decidiram atribuir a culpa dos crimes a Battisti porque ele estava fora do alcance da Justiça italiana. Assim, reduziriam a própria pena por meio de delação premiada sem causar grande impacto ao delatado.
Além da delação premiada, a instrução do processo de Battisti fez também uso das chamadas leis especiais, um conjunto de leis de exceção que suprimiu garantias individuais e que foi utilizado para acelerar os processos de réus acusados de crimes políticos. Essas leis foram amplamente condenadas por organizações de direitos humanos.
A associação Antigone, p. ex., considera as penas dos processos que utilizaram as leis especiais completamente "desproporcionais". O jurista liberal italiano Italo Mereu chegou a dizer que essas leis configuravam um verdadeiro "estado policial".
Na Itália, Battisti foi julgado à revelia, isto é, sem ter indicado e orientado advogado para fazer sua defesa. As únicas provas consistentes da acusação foram as delações de seus ex-companheiros. Mesmo assim, Battisti foi condenado à prisão perpétua.
Apesar disso, na França, logo após um pedido frustrado de extradição em 1991, Cesare Battisti conseguiu se estabelecer e recomeçar a vida, desenvolvendo uma carreira como autor de romances.
Apesar disso, na França, logo após um pedido frustrado de extradição em 1991, Cesare Battisti conseguiu se estabelecer e recomeçar a vida, desenvolvendo uma carreira como autor de romances.
Empenho da Itália na caça a Battisti atesta motivação política |
Em 2003, o então primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, começou a pressionar a França para extraditar Battisti e os outros foragidos italianos dos anos de chumbo. Battisti então fugiu, mais uma vez, para o Brasil.
No Brasil, Battisti foi detido em 2007 e ficou preso até 2011, aguardando os desdobramentos do seu caso. Em 2009, o ministro da Justiça, Tarso Genro, concedeu a ele o status de refugiado político, por "fundado temor de perseguição por suas ideias políticas".
Alguns meses depois, o STF julgou se o status de refugiado suspendia ou não o pedido de extradição feito pela Itália e terminou entendendo que Battisti podia ser extraditado, cabendo, porém, ao presidente da República o poder discricionário de executar a extradição ou não.
No último dia do seu mandato, Lula decidiu não extraditá-lo, alegando "haver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação". A permanência de Battisti no Brasil foi determinada, portanto, porque o governo brasileiro entendia que ele estava sendo perseguido pelo governo italiano.
A Itália nunca aceitou a decisão e, desde 2011, trabalha para revertê-la. Como o tratado de extradição entre Brasil e Itália não permite a extradição para crimes políticos, a estratégia do governo italiano consiste em dizer que o caso Battisti não é político, que ele é um foragido comum, condenado na Justiça italiana por quatro homicídios.
O próprio empenho do governo italiano que caça Battisti há 35 anos evidencia que não se trata de um crime comum.
O ato que Temer quer rever não diz respeito a se Battisti é culpado ou inocente. A decisão de que Battisti deve permanecer no Brasil é baseada apenas na constatação de que a Itália o persegue e de que não teve um julgamento justo.
Esse juízo pode ser controverso, mas é amparado pelos fatos. A pressão política sobre todos os países onde Battisti já esteve, o uso de expedientes abusivos, como as leis de exceção e as delações, o julgamento à revelia, tudo aponta para perseguição.
Ninguém espera de um governo tão sem virtudes como o de Michel Temer um gesto de coragem frente às pressões da Itália. Mas podemos esperar do Supremo uma decisão, ao mesmo tempo de soberania e de justiça, que impeça a revisão do ato que concedeu a Battisti a permanência no Brasil e finalmente ponha fim à duradoura perseguição política que sofre do governo italiano.
(artigo escrito para a Folha de S. Paulo por Pablo Ortellado,
professor de Gestão de Políticas Públicas na USP)
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