quinta-feira, 23 de junho de 2011

BAÚ DO CELSÃO: O FANTÁSTICO E O SOBRENATURAL NO DIVÃ

Invocado pelas novas gerações, o sobrenatural se alastra por vídeos e telas. Que 
sortilégios o rejuvenescram? Por que os possuídos e assombrados são 
agora os jovens? Trata-se de enigmas que só desvendaremos 
se reconstituírmos sua trajetória maligna...

Tão imensa quanto King Kong...
O sobrenatural, através dos tempos, sempre deu expressão a facetas da índole humana que não são admitidas pela sociedade e pela própria personalidade consciente do indivíduo.

Possessões demoníacas, p. ex., eram a reação extrema contra a repressão sexual vigente à época em que as energias corporais tinham de ser, tanto quanto possível, poupadas para o trabalho braçal.

As proibições inculcadas desde cedo constituíam obstáculos de tal forma intransponível que, para ceder aos instintos, as mulheres precisavam criar fantasias em que se supunham vítimas de íncubos (demônios tentadores).

...seria a volúpia de Fay Wray.
A lenda do vampiro, que forneceu a Bram Stocker a matéria-prima para o clássico Drácula, é uma variante dessas crenças. O canino que cresce para invadir jugulares tem óbvias características fálicas, tanto que, inclusive, perpetua a espécie, ao contaminar outras pessoas com o vírus do vampirismo.

Nos clássicos do gênero, por sinal, a simbologia é riquíssima.

A dualidade instintiva, os conflitos entre o eu aparente e os ímpulsos inconscientes (entre o ego e o id, na terminologia freudiana) constituem o motivo secreto do fascínio de O Médico e o Monstro e O Retrato de Dorian Gray, novelas em que eventos fortuitos acabam por revelar a personalidade real dos personagens, até então inibidas pelas convenções sociais.

E o sentimento difuso de que a ciência estivesse causando danos irreparáveis à natureza e à humanidade explica o fascínio de Frankenstein, em que os cientistas são apresentados como fabricantes de monstros.

Sensualidade latente no Drácula de 1931
Na transição para o cinema, a carga erótica implícita em várias novelas de terror foi atenuada. Afinal, dificilmente o moralismo dominante em Hollywood permitiria, p. ex., uma expressão mais ousada do lesbianismo latente no clássico Carmilla, de Sheridan Le Fannu.

E a própria penetração dos caninos de Drácula nos alvos pescocinhos das heroínas era convenientemente encoberta pela do vampiro, que neste momento estratégico erguia o braço para ocultar a cena dos espectadores.

Apesar disto, a imagem filmada conseguia sugerir muito e o clássico Drácula (1932), de Ted Browing, deveu grande parte do seu impacto à perturbadora aura sensual do personagem interpretado por Bela Lugosi.

E uma das principais criações do próprio cinema (não da literatura) -- King Kong (1933), de Ernest B. Schoedaksack e Merian C. Cooper -- foi por alguns analistas decifrado como uma gigantesca idealização da volúpia que fervia dentro daquela mocinha tão pura e ingênua protagonizada por Fay Wray.

GRANDE DEPRESSÃO x ESCAPISMO

O apogeu do terror na década de 1930, obviamente, tem tudo a ver com a grande depressão estadunidense. O cinema assume nessa época características eminentemente escapistas, levando os espectadores, em voos de imaginação, para longe de uma realidade insuportável, ao mesmo tempo que fornece fantasias compensatórias.

Frankenstein fazia esquecer a penúria
Assim, o homem comum na platéia se identificava com o herói que derrotava lobisomens, vampiros e múmias, e isto servia de alento para a batalha que ele próprio travava contra o desemprego e a miséria.

Ademais, segundo a dialética dos instintos proposta por Freud, a repressão de Eros leva a balança a pender para Thanatos. As dificuldades materiais e consequente prostração acarretam quase sempre esfriamento da libido e, como decorrência disto, o indivíduo se vê impregnado de morte, que se volta contra ele na forma de melancolia ou é descarregada para o exterior por meio da agressividade.

Assim, durante a depressão, as fitas de terror cumpriam exatamente o papel de permitir a projeção (para a tela) e catarse do instinto de morte que as pessoas carregavam dentro de si.

A morte aparecia como ameaça aterrorizante, colhia vítimas aqui e ali, mas acabava derrotada. Aos espectadores restava a sensação de terem estado (magicamente) próximos do perigo, mas escapado.

HORRORES NUCLEARES x CATARSE

O surto de fitas de monstros dos anos 50, quando dezenas de criaturas disformes e ameaçadores povoaram os pesadelos dos espectadores, é uma consequência do impacto que teve sobre a humanidade a barbárie e violência da 2ª Guerra Mundial.

Um mundo que supostamente caminharia a passos largos para o progresso e a civilização, foi surpreendido pela regressão à selvageria em sua forma mais brutal.

Godzilla: menos aterrorizante do que Hiroshima
O espanto e a perplexidade das pessoas precisavam ser expressos e expurgados de alguma manteira, daí o surgimento desses filmes em que os terrores primitivos irrompiam inopinadamente diante dos homens, corporificando-se nas figuras de seres pré-históricos e de animais que nos são temíveis ou repugnantes (insetos, polvos, aranhas, etc.), tornados gigantescos devido a qualquer incidente.

Na sua trajetória destrutiva, os monstros realizavam tudo aquilo que os espectadores mais temiam -- e, morbidamente, desejavam --, para, afinal, serem exterminados e a ameaça, afastada.

Por meio da morte de cada criatura dessas, exorcizavam-se simbolicamente os receios de uma nova guerra.

Isto fica ainda mais claro nas películas japonesas, em que os monstros eram engendrados ou despertavam de uma milenar hibernação a partir, quase sempre, de explosões atômicas.

Postêres ingênuos, mas muito impactantes
Os horrores reais de Hiroshima e Nagasaki, demasiadamente latentes na lembrança dos nipônicos, encontravam aí uma expressão atenuada -- pois, afinal, nenhum Godzilla imaginário poderia causar terror remotamente equiparável ao dos artefatos nucleares.

Outra característica significativa é a apresentação dos monstros como descomunais, evocação óbvia da idade em que o mundo nos parece ameaçador e povoado de seres gigantescos e muito mais poderosos do que nós: a infância.

Indo ao encontro dos temores primitivos e inconscientes dos homens, as fitas de monstros reconstituíram a situação de dependência das crianças -- tão impotentes face aos adultos, animais e ao meio ambiente quanto as multidões mesmerizadas desses filmes o eram em relação às tarântulas escorpiões gigantes que atacavam cidades.

O ÚLTIMO APOGEU  DO TERROR CLÁSSICO

Christopher Lee, o melhor Drácula
A partir de 1957, estendendo-se pelos anos 60, o terror clássico tem novo e derradeiro apogeu, com os estúdios britânicos Hammer e Amicus revivendo os velhos mitos das telas (Drácula, Frankenstein, o lobisomem, a múmia, Dr. Jeckill/Mr. Hide, o fantasma da ópera, etc.), sob a direção competente dos artesãos Terence Fisher, Freddie Francis, Roy Ward Baker e Jimmy Sangster, dentre outros.

Foi, também, a revelação dos dois últimos grandes atores referenciais do gênero: Peter Cushing e Christopher Lee.

Enquanto isto, nos EUA, o genial fabricante em série de filmes B, Roger Corman, transpunha em ritmo frenético para as telas os contos de Edgar Allan Poe, com elencos de veteranos ilustres (Vincent Price, Boris Karloff, Peter Lorre, Basil Rathbone, John Carradine, Ray Milland) e uma jovem promessa (Jack Nicholson).

Este  revival  terrorístico foi por alguns avaliado como uma reação à vida insípida e sedentárias das metrópoles modernas e ao cipoal burocrático no qual o cidadâo comum sente-se enredado e tolhido.

A complexidade das relações sociais em nossa época é tamanha que desperta no homem a nostalgia por desafios simples, inimigos concretos que se pudesse vencer numa luta corpo-a-corpo.

Clássico de Corman: O Corvo
No cotidiano, trabalhamos em companhias das quais só conhecemos os escalões intermediários, enquanto a cúpula está longe, inatingível, como o senhor do castelo kafkiano. Somos obrigados a cumprir decisões de que não participamos, nem sabemos como foram tomadas.

E tratamos com outras organizações impressoais, como bancos, imobiliárias, repartições públicas, universidades, das quais só conhecemos funcionários, mas jamais atingimos o  todo, o  cérebro.

Quando temos queixar a fazer, acabamos perdidos no labirinto das várias burocracias arrogantes. Se nos sentimos oprimidos ou logrados,
dificilmente conseguimos identificar o que vai mal em nossas vidas.

Não seria mais fácil lidar com o Mal, um ente definido, poderoso, poderoso, mas também vulnerável? Não seria preferível combater Drácula do que o demônio do vesbibular, os ogros dos testes de admissão, o fantasma do desemprego, a esfinge das dificuldades de ascensão econômica e social?

Não seria mais simples queimar o laboratório do barão Frankenstein do que livrarmo-nos dos cientistas loucos do governo que nos impõem políticas econômicas monstruosas?

O SANGUINOLENTO TERROR ZOOLÓGICO

Na década seguinte, veio a voga do terror zoológico, desencadeada em 1975 por Tubarão, de Steven Spielberg. Desta vez, o homem se via confrontado por animais de dimensões comuns (cobras, abelhas, aranhas, cães, polvos, baleias, piranhas). Mas que, por conta dos desvarios ecológicos ou de experiências científicas malogradas, voltavam-se contra ele.

Roy Scheider e sua pescaria complicada...
São filmes em que se percebe certo complexo de culpa pelos danos causados à natureza e às espécies animais, mas, ao mesmo tempo, aprofunda-se o fosso entre o homem e a vida selvagem. Ou seja, parecem reforçar o condicionamento dos urbanóides que subsistiam em oposição ao habitat natural, reconfigurando-o ao invés de harmonizar-se com ele.

Além disto, a crueza com que são mostrados os ataques de animais contra seres humanos denunciam uma enorme carga de agressividade reprimida nas platéias, que vibravam ao verem gente sendo estraçalhada.

A FÚRIA DAS CRIANÇAS MIMADAS

A morbidez se manteve nos anos 80, com dilacerações explícitas salpicando de sangue os espectadores. Segundo o psiquiatra Thomas Radecki, existem aproximadamente mil estudos e científicos e reportagens sobre a violência desmedida nos filmes, sendo que 75% deles concluem que há um sensível aumento de atitudes anti-sociais e violentas depois que as pessoas assistem a tais fitas.

O público-alvo desse terror de base sadomasoquista é o infanto-juvenil. Praticamente desde o início da década, nas salas de exibição a predominância é dos menores de 18 anos, daí a produção ter sido cada vez mais direcionadas para estas faixas etárias. E, com a disseminação do VHS e do DVD, o terror roqueiro virou verdadeira mania.

Trata-se de um filão em que o sobrenatural tem como adversários não mais os amadurecidos mestres em ocultismo, mas sim garotos e adolescentes; as carnificinas alternam-se com alívios cômicos; e a trilha sonora é de  heavy metal.

Jason: punição para o sexo adolescente?
A extrema agressividade implícita nos jovens consumidores dessas fitas advém do narcisismo exacerbado que as crianças desenvolvem na sociedade de consumo. Mimadas e paparicadas à exaustão, sentem como um crime de lesa-majestade os golpes que a realidade vai desferindo contra suas ilusões de onipotência, daí a agressividade que acumulam e para qual estes filmes oferecem projeção e catarse.

Além disto, após o período dourado da juventude vem o ingresso na sociedade extremamente competitiva dos dias atuais, a começar pela guilhotina do vestibular. Estes filmes em que jovens derrotam vampiros e monstros são simbolizações dosritos de passagem, servindo magicamente para revigorar a confiança dos adolescentes quanto a enfrentar com êxito os desafios que marcarão sua transição para o mundo dos adultos.

Finalmente, a liberação sexual das últimas décadas não é isenta de castigos (simbólicos). Grande parte desses filmes, e a série  Sexta-feira 13 em especial, insiste em mostrar,  ad nauseam, jovens namorados sendo trucidados por entes malígnos logo após terem mantido relações sexuais...
Obs.:  escrevi este artigo em 1980, para a revista  Fiesta Cinema, com o título de O que há por trás das histórias e filmes de terror?. Depois, várias vezes o atualizei, para outras publicações.

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