Para os que se lembram dele apenas como o vice-prefeito paulistano na gestão de Marta Suplicy, vale a pena evocarmos o ponto mais alto de sua longa trajetória (que registra, inclusive, passagem pelo Governo Goulart, como ministro interino da Fazenda).
No pior momento da ditadura de 1964/85, Bicudo era procurador de Justiça no Estado de São Paulo e travou luta incansável, perigosíssima, contra o Esquadrão da Morte, uma organização criminosa constituída por policiais para, alegadamente, exterminar bandidos.
O chefe da quadrilha atendia pelo nome de Sérgio Paranhos Fleury.
Ocorre que esse delegado se transferiu para o Deops e virou um dos símbolos da repressão política, ao armar a canhestra cilada na qual foi executado Carlos Marighella -- e mortos também o motorista de um carro que trafegava pelo local e uma investigadora alvejada pelos colegas.
Em função de seus bons ofícios como torturador e assassino de resistentes, os militares tudo fizeram para evitar que Fleury recebesse a justa punição pelos crimes que antes cometera, à frente do Esquadrão da Morte. Acreditavam que isso desprestigiaria a luta contra a subversão.
Apesar das pressões, intimidações e ameaças recebidas, Bicudo travou luta sem trégua para levar os carrascos do Esquadrão a julgamento. O único apoio de peso com que contava era a imprensa dos Mesquita (O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde).
Quando conseguiu que Fleury fosse indiciado, a ditadura introduziu uma lei com o objetivo exclusivo de evitar que ele tivesse de aguardar preso o julgamento, como até então era norma. Ficou apropriadamente conhecida como Lei Fleury.
O destemor e a perseverança de Bicudo, entretanto, acabaram prevalecendo. Sua cruzada começou a ser vitoriosa quando ele conseguiu provar que o Esquadrão da Morte não era um bando de justiceiros, mas tão-somente a jagunçada que, a soldo de um grande traficante, eliminava seus concorrentes.
Os militares não se vexavam de acumpliciar-se com homicídios e práticas hediondas, endossando-as/acobertando-as, mas queriam distância de traficantes.
Então, tiraram a proteção e os privilégios de Fleury, que acabou sendo vítima de um estranho acidente, por muitos interpretado como queima de arquivo.
Para quem quiser conhecer a história toda, recomendo o magnífico relato do próprio Bicudo: Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte, que já teve nove edições no Brasil e foi lançado também na Alemanha, Espanha, França e Itália.
E a boa notícia é que Hélio Bicudo tem um pouco divulgado blogue, que recomendo com entusiasmo: Direitos Humanos.
Esta vem sendo, aliás, sua bandeira principal desde a década passada, quando presidiu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, tendo depois criado a Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos, da qual é presidente.
Uma das pérolas do seu blogue é o artigo abaixo, que reproduzo e subescrevo:
UM ESTADO POLICIALESCO
Quando militei no PT, uma das questões pela qual seus parlamentares lutavam era a unificação das polícias, com a instituição de uma polícia civil com uma carreira que tivesse início no seu posto inicial, mas que permitisse – mediante os esforços daqueles que pretendiam diferenciar-se não só pela experiência como pelo aperfeiçoamento acadêmico – alcançar os postos mais altos da carreira.
Conquistado o primeiro mandato de Lula, não se sabe bem quais os compromissos assumidos, abandonou-se a idéia inicial, com o esquecimento de projetos que buscavam a unificação já apresentados à consideração do Congresso Nacional por deputados da bancada dos Partido dos Trabalhadores.
Não demorou muito tempo e o Congresso aprovou e o Presidente da República promulgou lei concedendo poder de polícia aos militares do Exército. Isso, não obstante o malogro de medida adotada no governo FHC, quando tropas do Exército passaram a policiar as favelas do Rio de Janeiro. E mais recentemente as demais forças (Marinha e Aeronáutica) passaram a ter mais esse poder. Agora, o governo quer dar à Receita Federal, não só poder de polícia, como atribuições judiciárias, permitindo às “tropas” da Receita a quebra de sigilo, penhora de bens e até mesmo invasão de domicílio.
Isto tudo aconteceu sem que ninguém dissesse uma só palavra, quando é certo que, segundo o art. 142 da Constituição Federal, as forças armadas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes Constitucionais e, pela iniciativa de quaisquer dos poderes, da lei e da ordem.
A Polícia é responsável pelo policiamento ostensivo e pela investigação criminal.
Quais as conseqüências da instituição de um estado policial, pergunta-se? Um claro caminho para o autoritarismo.
Veja-se que, na medida em que se procurou limitar a competência da justiça militar estadual, as leis que outorgam poder de polícia às Forças Armadas entregam o processo e julgamento dos crimes cometidos pelos militares dessas forças, mesmo que tenham como sujeito passivo vítimas civis, à justiça militar, cujo corporativismo tem impedido julgamentos justos.
Longa foi a caminhada para impor o processo e o julgamento dos crimes dolosos contra a vida de civis ao tribunal do júri, hoje, com a reforma do Poder Judiciário (Emenda Constitucional nº 45/2004), restrito apenas ao julgamento (art. 125 § 4º da Constituição Federal), que é o mesmo que acalentar a impunidade que pretendeu reprimir.
Ora, se as polícias militares são forças auxiliares do Exército, pelo princípio da isonomia interpretado extensivamente, por que os policiais militares devem ter restrições nos seus julgamentos pela justiça militar?
É uma pergunta que não irá demorar para ser feita. Qual será a resposta? É fácil identificá-la: irá derrubar todos os esforços que objetivavam impedir a impunidade conseqüente do corporativismo dos julgamentos militares.
Algo que foi feito a duras penas, enfrentando o poderoso “lobby” da polícia militar no Congresso Nacional, começa a desmanchar-se em benefício da impunidade.
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