dalton rosado
O ADENSADO MÓVEL DA GUERRA
"A primeira vítima da guerra é a verdade"
(Hiram Johnson, político profissional
estadunidense do século passado)
As guerras, ao longo dos tempos, sempre se caracterizaram pelo desejo de subjugação política territorial com sentido de exploração de riquezas materiais ou escravização de uns grupos por outros.
Entretanto, em nenhum momento da história humana as guerras mataram tanto como nos últimos 200 anos de dominação capitalista, que vão desde as campanhas napoleônicas até as ameaças de hecatombe nuclear dos dias atuais, passando por dois conflitos mundiais.
O capital é belicosamente genocida, individualista, antissolidário, negativamente meritocrata competitivo, mesquinho, racista, misógino, xenófobo e prepotente porque dá ordens absolutistas letais aos seus súditos inconscientes da servidão a que se prestam.
O pequeno comerciante de bairro, outrora assalariado, tem como objetivo inescapável o desejo de ampliar mercado, porque mesmo sem compreender cientificamente a essência constitutiva do capital e sua necessidade de autorreprodução ad infinitum (já aí uma contradição com os limites do consumo) sem a qual o dito cujo sucumbe, ele percebe, na sua sensibilidade de esperto negociador, que há uma lei de mercado segundo a qual quem não cresce, decresce.
Assim, ele é inimigo na guerra concorrencial de mercado com seu congênere de bairro, ainda que se cumprimentem nas reuniões da escola privada a que os dois têm acesso, de vez que não querem que seus filhos estudem na escola pública carente de tudo (são membros da precária elite entre os muitos comunitários pobres).
Este é um exemplo microssocial do caráter negativamente individualista, antissolidário e negativamente competitivo da relação social sob o capital que se reproduz na escala macrossocial política e econômica.
O capitalista conservador inverte os conceitos e transforma o que é negativo em positivo. Vejamos alguns poucos exemplos:
-- a história da negação vacinal remonta, no Brasil, aos idos de 1904, quando Osvaldo Cruz aconselhou a vacinação obrigatória contra a febre amarela, varíola e peste bubônica, causando revolta na população do Rio de Janeiro, mesmo diante das muitas mortes epidêmicas que estavam ocorrendo (dizia-se que Deus era contra aquela bruxaria, algo parecido como virar jacaré ou homossexual);
-- a vitória destrutiva do outro na competição mercantil fratricida se transforma em justa recompensa segundo o viés da meritocracia;
-- o rico é rico porque é inteligente enquanto trabalhador é pobre porque é ignorante ou preguiçoso;
-- as melhorias urbanas dos bairros ricos, contrastando com os bairros pobres de uma cidade socialmente cindida, são justificados pela retórica da necessidade de se promover o turismo, por questão de antiguidade residencial, das edificações públicas importantes, pela cobrança diferenciada de impostos sobre a propriedade urbana, etc.;
-- o engarrafamento do trânsito nas grandes cidades entupidas de carros e sem transporte público adequado, se deveria à incompetência administrativa governamental, e não ao irracional comodismo individual dos burgueses, que fazem questão de usar seus carros confortáveis;
-- o incrível aumento da criminalidade se deveria à deficiência policial e abrandamento das penas e liberalidades aos presos, sem se levar em conta o alto custo de combate à criminalidade numa sociedade que produz altos níveis da dita cuja pela desigualdade social e maus exemplos (o capital é intrinsecamente corrupto), e por aí vai.
Ora, plasmadas sob um contrato social injusto, como poderiam as nações, constituídas sob um nacionalismo capitalista xenófobo, praticarem uma cultura de paz?
A guerra já começa no interior de uma sociedade socialmente cindida que induz a um processo de criminalidade impossível de ser contido pela força militar, sem se levar em consideração o alto culto do combate à dita cuja, que vai desde o policiamento ostensivo preventivo, processamento judicial e aprisionamento carcerário. Um crimino preso, processado e condenado, é muito mais caro do que um professor.
A guerra nada mais é do que a explicitação genocida de uma concepção de relação social política e econômica injusta praticada no interior das nações e nas relações destas com todas as outras.
Os antigos feudos transitaram das guerras de conquista desde antes do Império Romano até a criação das nações numa tentativa de moderna hegemonia econômica destas e, agora, por blocos capitalistas insanos.
Ora, se desde o pequeno comerciante de bairro se processa uma guerra autofágica na qual se concentra a riqueza e se destrói pela competitividade o concorrente, como se pode querer que as nações sejam solidárias uma com as outras evitando as guerras genocidas de conquista quando dependem do mesmo critério existencial autofágico de busca de conforto e bem-estar?
Não se trata, portanto, de uma questão de falta de consciência humanitária, ainda que isto se manifeste claramente, mas de uma concepção de relação social decadente que busca nas guerras uma solução que jamais virá por essa via e que ameaça a todos de extinção.
O Fundo Monetário Interacional avisa que a fome no mundo está aumentando. Ora, quando se busca a sobrevivência de um contingente humano diante da escassez de provimento desta mesma sobrevivência, a resultante lógica é a guerra fratricida.
A queda na capacidade de consumo pelo critério da compra e venda representa redução da produção de mercadorias, uma vez que sob a lógica capitalista somente se produz o que se vende e este é o começo do final da linha histórica.
O fluxo da economia necessita de produção de valor a qualquer custo, principalmente para financiar o setor terciário (da mercadoria serviços, maior parcela componente dos PIBs mundo afora, que não produz valor novo). Contudo, valor válido somente pode existir pela produção de mercadorias dos setores primário (agronegócio) e secundário (industrial).
Aí está o nó górdio da crise do capital, porque a emissão de moeda sem valor válido representa vida artificial capitalista por aparelhos, que não se sustenta por muito tempo.
Tal é o móvel do adensamento das guerras atuais: a tentativa inglória de sobrevivência nacional dentro de um modelo que atingiu o seu limite de expansão interno (a impossibilidade de reprodução de valor válido) e externo (a impossibilidade de contenção da crise ecológica que lhe é incidental).
A transição para uma hipotética, mas muito desejável terceira natureza humana --e isto desde que não sucumbamos à sanha genocida do capital que precisa urgentemente ser superado sem as firulas de reformas que apenas o conservam na sua essência--, representará a ruptura com a irracionalidade socialmente destrutiva e autodestrutiva da própria forma abstrata de comando negativo da relação social sob a qual vivemos.
Tal ruptura promoverá o raiar luminoso de um novo dia. (por Dalton Rosado)
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