quinta-feira, 9 de maio de 2024

EM 71 CAETANO VELOSO JÁ DIZIA: "TODOS SABEM QUE AS NOSSAS CIDADES FORAM CONSTRUÍDAS PARA SEREM DESTRUÍDAS"

 dalton rosado
A DECADÊNCIA EXPLÍCITA DAS CIDADES
Edifício histórico de Fortaleza, o São Pedro já estava com 
tombamento aprovado, mas em 2021 foi devolvido ao dono
 
Salta aos olhos o nexo causal das mutações sociais em curso, provocadas pela era da terceira revolução industrial da microeletrônica e sua inadaptação às relações sociais próprias ao patriarcado do sistema produtor de mercadorias.  

Em nenhum momento da História houve tão profundas e rápidas transformações de hábitos comportamentais e de produção de mercadorias e serviços em face da inconciliabilidade entre forma e conteúdo nas relações sociais capitalistas como as que estão a ocorrer nos últimos 50 anos.

A tecnologia da era cibernética da microeletrônica trouxe consigo a mais profunda mutação própria ao processo dialético histórico já havido anteriormente... e pode se tornar revolucionária, caso venhamos a compreender o seu uso socialmente necessário.
 
Entretanto, tal inconciliabilidade está a exigir novos conceitos de produção e serviços sociais justamente porque, ao invés de trazer comodidade de vida às pessoas (proporcionada pelos ganhos do saber adquirido), está a causar a decadência social de modo acentuado e perigoso. Todo dia agora se ouve falar em guerra atômica.
Outros edifícios provisoriamente tombados: acabaram
destruídos antes de serem restaurados e reaproveitados

Eis que:
— sabemos ir a Marte e não sabemos como aplacar a fome no mundo, que aumenta cada vez mais;
— sabemos muito sobre genética humana, mas estamos promovendo a destruição da vida por aquecimento do planeta;
 fazemos cálculos antes inimagináveis em segundos e ignoramos os números da tragédia vivida pela humanidade;
 sabemos racionalmente da importância da paz e nos armamos com máquinas da morte cada vez mais sofisticadas para a promoção da guerra, etc.

Ou mudamos o nosso modo de produção e distribuição de bens necessários ao consumo, colocando a tecnologia ao nosso favor, ou vamos sucumbir diante da inviabilidade de vida social configurada na paralisia da falência capitalista e do seu estado mantenedor.

Não se produz porque não se vende, e não se vende porque não se produz. A cobra está a comer a sua própria cauda.

Em qualquer cidade do mundo capitalista, nas quais a cisão social foi sempre perceptível, mais ou menos acentuada dependendo do país, há dois fenômenos visualmente perceptíveis:
Esta é a Fortaleza que não aparece nos cartões postais
 crise habitacional para os pobres e enclausuramento dos ricos nos condomínios de luxo por medo da violência urbana; e
 migração das lojas, dos antigos centros comerciais para os shopping centers.

A questão do fechamento das lojas se prende a dois fatores básicos: as compras pelo sistema de
delivery por aplicativos e o aumento dos assaltos à mão armada. 

A segurança de shoppings centers e condomínios fechados, aliada às compras e serviços que são efetuadas por aplicativos, transformaram os hábitos de uma forma generalizada.

Tudo se faz e se trata via celulares e a comunicação eletrônica por estes aparelhos e computadores é preponderante. Já se conversa com o vizinho de mesa por telefone e, em qualquer fila de espera, 80% de  todas as pessoas que ali estão têm os olhos fixos na telinha.

Advogados peticionam eletronicamente; os processos são digitalizados; as audiências são virtuais e a vida sem interação humana é cada vez mais individualista. Idem, idem para cálculos de engenharia e desenhos arquitetônicos, resultados de consultas médicas e até cirurgias à distância.

Nas grandes fábricas impera a robotização que substitui os operários, que desempregados, mendigam os empregos que sempre os escravizaram, e já não têm força de exigência e pressão por melhores salários, contentando-se com a preservação do emprego cada vez mais precarizado e tremendo de medo face aos frequentes cortes de pessoal.
Grauciano Rodrigues, campeoníssimo surfista
cearense, continua morando até hoje na favela

Na Fortaleza em que vivo há 54 anos e pela qual me apaixonei, a cisão social sempre existiu mas agora toma ares dramáticos.
         
Em contraste com uma Beira-Mar lindíssima, iluminada pelo sol do ano todo e pelas luzes de neon durante a noite com seus prédios luxuosos margeando os belíssimos verdes mares cantados em prosa e verso, notam-se, à pouca distância, a imagem da decadência.

A Praia do Futuro tem um presente de favelização crescente, daí a mercadoria terra não ser acessível a quem ganha salário-mínimo ou vive do bolsa família e agradece aos céus a forte maresia que por lá tudo corrói e afasta os moradores ricaços de um cenário deslumbrante de mar, dunas e praia.

A favelização é também uma tônica nas moradas sem a mínima estrutura urbana de habitação.

Até mesmo nos bairros ricos de uma cidade de cerca 2,6 milhões de habitantes (mas cercada por um cinturão de pobreza), vemos casas sem pintura, lojas fechadas, ruas esburacadas, precária coleta de lixo, homens maltrapilhos carregando carrinhos-de-mãos da coleta de objetos para reciclagem, zumbis viciados e escravizados pelo consumo do crack devastador, insegurança causada pelos altos índices de violência urbana, num cenário que me entristece e aterroriza.

As praças públicas dos bairros elegantes estão tomadas por moradores em situação de rua que improvisam barracos de proteção nesses tempos de chuva no nordeste do Brasil. 
Enésima operação policial que nada resolve na cracolândia 

Em frente à Faculdade de Direito, outrora ambiente solene e de vida política pulsante, pululam abrigos de papelão nas suas marquises, improvisados pelos seres que por ali amargam o seu desespero; idem, na Praça da Bandeira, em frente à velha cátedra.

Nos bairros pobres, de moradas sem esgoto sanitário e ruas mal-cuidadas, as casas sem pinturas emolduram a face triste e perplexa de uma população que sequer compreende o porquê de tanta tecnologia em contraste com a precarização de suas vidas sem perspectivas.  

O fenômeno se repete em todas as grandes cidades brasileiras, numa prova de que não é uma questão de má-administração pública localizada, mas de uma realidade sistêmica.
 
O que dizer de São Paulo, a meca do capitalismo da América Latina, com seus problemas de verdadeiras multidões ocupando espaços para o consumo de entorpecentes, as cracolândias?

Também por lá são comuns as ocupações de espaços por sem-tetos, em contraste com uma Avenida Paulista e suas suntuosas catedrais do mundo empresarial e financeiro.
Moradores de rua acampados no Masp (avenida Paulista)

As quais, vale dizer, servem como moldura da decadência no seu entorno a desfigurar e denunciar a ilusória imagem de progresso e de sua “feia fumaça que sobe encobrindo as estrelas”  (Caetano Veloso).

Precisamos de uma reflexão sobre tudo isto! 

Não se trata de uma polarização entre a direita recalcitrante e retrógrada e a oposição a ela por partidos mais ao centro ou à esquerda na geopolítica conformista, mas da urgente adaptação dos saberes adquiridos pela humanidade ao longo de séculos e que ora se condensam de tal forma científica aplicada à lógica funcional de uma relação social segregacionista e autofágica que expõe a necessidade de efetivação de pressupostos adequados à nova realidade social.

Desculpe, minha Fortaleza querida, se lhe tratamos tão mal. (por Dalton Rosado)

4 comentários:

Neves disse...

The liberal international order is slowly coming apart
Its collapse could be sudden and irreversible
https://archive.ph/hpJU3#selection-1007.0-1011.45

The world’s economic order is breaking down
Critics will miss globalisation when it is gone
https://archive.ph/7PRis#selection-1003.0-1007.47

Deglobalisation of finance
Worlds apart
Special reports - May 11th 2024
The American-led financial order is giving way to a more divided one
https://archive.ph/SGLJX#selection-995.0-1011.70

Neves disse...

Há duzentos anos… Artigo de Maria da Glória Lopes Kopp
https://sul21.com.br/opiniao/2024/05/ha-duzentos-anos-por-maria-da-gloria-lopes-kopp/

A chave do céu e a porta do inferno: os monges barbudos
de Soledade e Sobradinho
https://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/4732/1/459210.pdf

A floresta, o curandeiro, o juiz e o capitalista: resistência mestiça em Soledade e Sobradinho
https://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/9069/2/Maria_da_Gl%c3%b3ria_Lopes_Kopp_Tes.pdf

SF disse...

***
Bom dia, Dalton!
Umbuzeiro-PB começou a ser cidade por ser ponto de parada dos tropeiros da serra da Borborema, que vinham de Recife até Campina Grande.
Ali surgiu a praça do mercado, a igreja, os serviços, artífices...
*
Meu bisavô era um desses artífices e, além disso, tocava rabeca.
Uma noite ao voltar de uma festa, tocando a rabeca, foi envolto em um redemoinho. Esse fato causo-lhe um susto tão grande que nunca mais tocou rabeca nos festejos da região.
"Rabeca é coisa do cão"!
Asseverou.
Aliás, o seu nome era Severino.
***
Vi outras localidades nascerem "do nada".
Mas o padrão sempre foi a junção de serviços, artífices e mercadores.
E cidades são egrégoras.
O pensamento que as domina é o mercado e tudo mais dele deriva.
***
Como são lugares relativamente tranquilos e propícios ao ócio a tendência é que a concentração de riqueza, no seu pequeno espaço territorial, dê ao citadine a ilusão de que a vida é fácil e que pode se reproduzir sem medo de ser feliz.
*
Daí a superpopulação e os problemas dela decorrentes.
***
Mesmo que todos os habitantes tivessem o necessário para uma vida digna, o fator adensamento populacional, degringola o processo de vida saudável e chega até a extinção.
*
Nunca é demais lembrar o J. Calhoun e suas mouse utopias.
***
Observe-se a tendência das pessoas da cidade, que ainda tem alguma saúde, procurarem adquirir terrenos fora dela e formar pequenas chácaras.
Quem não consegue fazer isso, morre lentamente no ambiente urbano imerso em angústia, depressão, manias e, quase todos, entupidos de drogas (principalmente anti-hipertensivos e moderadores de humor).
Sendo alguns completamente adictos de drogas ilícitas, estupefacientes e psicótico-miméticos.
***
Sair deste labirinto doentio e rodeado de mercadores é difícil.
É O grande desafio!
Espero que o vençamos sem abdicar de nossas conquistas tecnológicas.
Avante!
***
P.S. Caetano estava certo, a tendência de toda urbe é a decadência.
*

Túlio disse...

Olá, Dalton
Esse texto é um retrato fiel da decadência econômico-social em que vivemos.
"O fenômeno se repete em todas as grandes cidades brasileiras, numa prova de que não é uma questão de má-administração pública localizada, mas de uma realidade sistêmica."
E este cenário também "me entristece e aterroriza", mesmo porque não imagino uma ruptura tão cedo (muitos avaliavam ingenuamente que haveria mudanças no capitalismo no pós pandemia...).
E em nosso país, onde há muito tempo a taxa de homicídios é comparável com a de uma guerra civil, o custo ideológico do controle social está cada vez mais alto para que não nos transformemos num grande Haiti.

https://youtu.be/IW4pAwf1cDo?si=-OrH-opVlUt01_rA

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