O segundo longa metragem da carreira do diretor pernambucano Daniel Bandeira é um aguçado estudo sobre a situação atual da luta de classes do Brasil, em que se cruzam a dinâmica secular do capitalismo de matriz colonial, forjado na exploração agrícola, com o novo capitalismo da especulação imobiliária.
Embora possua um roteiro mediano, com alguns lugares comuns e soluções sem muita criatividade, a direção, a boa montagem e a excelente atuação permitem extrair uma obra que navega entre um filme de horror, suspense e realismo social de forma fluída e complexa dando ao espectador a sensação de assistir a um cenário perfeitamente plausível e expressivo do contexto brasileiro deste começo de século.
A estilista Tereza, interpretada por Malu Galli, se recupera do trauma de ter sido feita refém por um criminoso em via pública. O filme se inicia com as cenas do sequestro e a ação milimétrica de um sniper da polícia abatendo o sequestrador sob os aplausos do populacho reunido. Sofrendo de síndrome pós-traumática, Tereza vive reclusa em seu apartamento de classe média alta no Recife, ficando afastada de seu marido, Roberto (Tavinho Teixeira), de sua filha e até mesmo do cachorro. Para ajuda-la, o marido decide irem os dois para sua fazenda no interior a bordo do luxuoso carro novo que mandara blindar.
Não é preciso muito para compreender a dinâmica social do filme. A família vem de uma longa tradição de latifundiários do nordeste que vivem na capital auferindo a renda das terras localizadas no interior. O proprietário pouco se interessa pela situação do lugar, deixando tudo nas mãos de um administrador. O regime de trabalho na fazenda ainda perpetua o sistema de parceiros e meeiros, sem relações salariais, com famílias lá trabalhando há gerações. De forma clássica, Roberto controla os trabalhadores retendo seus documentos e induzindo dívidas pela venda de mercadorias a eles.
Contudo, a fazenda não é mais rentável e a família possuí novos planos para ela. O avanço do agronegócio para o Centro-Oeste e o incremento da produtividade associada tornaram fazendas de médio porte iguais a de Roberto obsoletas, fazendo a renda da produção agrícola decair. Ao invés da exploração agropecuária, o interior do nordeste afigura-se agora como terreno para o setor de turismo e, por isso, Roberto decide fechar a fazenda e construir um hotel, dispensando os antigos trabalhadores.
Surpreendidos com a notícia, eles decidem confrontar o gerente da fazenda, mas a situação saí do controle e ele acaba morto. A coisa se complica mais com a chegada inesperada do casal. Roberto é gravemente ferido e Tereza se refugia dentro do carro blindado, transformando-o em um bunker.
O mais importante em considerar no tenso cerco ao carro é a ausência completa de heróis ou vilões. O destino de Tereza não gera muita comoção e tão pouco as cenas claustrofóbicas dentro do carro nos trazem muita empatia. Também não traz muito envolvimento a sorte dos trabalhadores, que oscilam entre a tentativa de negociar com os patrões e o uso da violência nua e crua. Isso não quer dizer que não haja tensão ou verdadeiro horror nas cenas, mas o suspense não passa pelo destino específico dos personagens, mas pela situação conflituosa em si. Nesse aspecto, Daniel Bandeira consegue capturar com maestria a lógica dilacerante e desumana da propriedade privada e seus impactos em nível de relações sociais.
A todo o momento o que perpassa e atravessa o conflito retratado entre os trabalhadores e seus patrões, particularmente Tereza, é a lógica da propriedade. Os trabalhadores desejam se apropriar das posses que acreditam serem deles pelos anos de cuidado da fazenda, chegando mesmo alguns a desejarem se apropriar da fazenda por inteiro. Roberto, por sua vez, deixa claro que eles não possuem qualquer direito sobre a terra que é exclusivamente sua, fruto de herança familiar de séculos. No meio do conflito, Tereza apenas se encastela para salvar a própria vida.
Ao transformar seu carro blindado em um bunker, Tereza representa a burguesia, não apenas brasileira, que se empareda em condomínios de luxo altamente vigiados, deslocando-se pela cidade apenas em seus automóveis fortificados ou mesmo em helicópteros. Negando o significado do seu nome, essa burguesia do século XXI não está mais nas cidades, tendo as abandonado às torrentes de lumpemproletariados surgidas da reestruturação neoliberal e do desemprego estrutural criado pelo avanço da automação. Sua relação com o ambiente urbano é mediada apenas pela renda da terra, extraída através de aluguéis extorsivos e empreendimentos imobiliários.
Mas ela ainda possuí laivos saudosistas com o campo e, por isso, performa uma espécie de reminiscência arcaísta, fugindo para o mundo rural para escapar ao inferno urbano. Não compreende, contudo, que está levando o inferno também para o campo justamente ao conduzir para lá a especulação imobiliária reinante nas metrópoles. Ou seja, está alargando para o campo a lógica degradadora do tecido social com o deslocamento dos trabalhadores campesinos, o encarecimento da terra, do custo de vida e a consequente lumperização também daquelas populações.
Os trabalhadores, por sua vez, não estão com melhor sorte. Sentem claramente a ruína de seu antigo modo de vida e possuem consciência de que não serão absorvidos no novo empreendimento devido à incompatibilidade de seus perfis com o desejado no empreendimento horteleiro. Vivendo no limbo jurídico, oscilam entre apelos emotivos aos patrões e o uso despropositado da violência. Em nenhum momento chegam a formular uma crítica à lógica capitalista, buscando apenas reivindicar o direito à posse.
Ao fim, solucionam o impasse com Tereza simplesmente fazendo a terra engoli-la e acreditam terem assim posto ponto final aos seus problemas. Contudo, logo em seguida são derrotados pela realidade ao surgirem fazenda adentro os futuros novos donos do hotel cavalgando em seus carrões igualmente blindados. Os patrões estão mortos, mas nada freará o capital, pois ele é impessoal.
Nada poderia ser mais representativo da situação atual da luta de classes. Sem organização, sem direcionamento, o povo chega no máximo a eclosões violentas que em nada muda o essencial da dinâmica capitalista. Sem conseguir romper com os limites do capitalismo, as insurreições acabam sendo fastidiosos, e muitas vezes sangrentos, giros em torno da propriedade, não indo além, na teoria e na prática, do que a reivindicação da própria posse. Esse impasse ameaça nos levar todos à ruína à medida que, encastelados ou não, somos tragados pela agonia capitalista.
Por isso, o filme Propriedade é uma boa apreensão da era de impasses e ruínas que vivemos. (por David Emanuel Coelho)
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