quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

O AMOR VENCEU, UM CONTO DA ERA LULA 3

 'O amor venceu!', disse alguém na internet em resposta a uma postagem do governo e Zoinho, que mal tinha acesso à internet e pouco sabia ler, ficou pensando em que significavam aquelas palavras. 

Ele não gostava de ser chamado de zoinho, apelido dado pelos colegas da escola devido ao seu olho direito um pouco fechado. Com socos e chutes partia para cima de quem ousasse usar tal nome, acabava apanhando, ainda mais ridicularizado e vendo o apelido pegar com mais intensidade. Certo dia, um colega foi até sua casa para fazer um trabalho escolar e o chamou assim na frente dos vizinhos, pronto!, zoinho se oficializou a ponto de até sua família não lembrar mais qual era sua real alcunha. 

Mas ele próprio acabou aceitando a denominação, pois tendo abandonado a escola por volta do quarto ano do fundamental, passou sempre a se apresentar como sendo o Zoinho, em mais um exemplo de que de fato o conceito é socialmente construído. 

Zoinho lera a frase após alguém lhe mostrar a postagem em que era anunciado o aumento do valor do Bolsa Família. 'Certamente você deve ter direito', dizia a pessoa, 'você precisa voltar pra sua casa e voltar pra escola. Você tem quantos anos? 14?... pois é, ainda tá na idade... aproveita que esse governo olha pelos pobres...'.  

Zoinho ficou alguma coisa ofendido, pois não era morador de rua, apenas costumava andar pela cidade para usar seu loló, pois a mãe, evangélica, não o permitia em casa e mais de uma vez o havia levado para a Igreja participar de uma sessão do descarrego. Ficava alguns dias fora e depois retornava, fazendo tremendo barulho no portão para entrar. Para comprar a droga, vivia vendendo drogas e o sujeito do celular era justamente um de seus compradores. 

Mas não quis voltar naquele dia, ouvira que um padre ia distribuir comida e estava morrendo de fome. Caminhou em direção ao local, mas precisava passar por um bairro de classe média alta e não gostava muito de lá, pois uma vez, sentado na rua por ali para comer uma quentinha, um sujeito mal encarado de bermuda e sem camisa lhe deu um pontapé enquanto esbravejava 'vaza, porcaria! Esses cracudos ficam infestando a rua da gente!'. Para Zoinho, a maior ofensa não foi o chute, foi ter sido chamado de cracudo, logo ele que se orgulhava de só usar loló!

Evitava o lugar desde então, mas era o caminho mais curto, então foi por lá. Felizmente, havia pouca gente na rua naquela tarde fria de maio. Apressando o passo logo se livrou do bairro e chegou no local de distribuição da comida. Lá já haviam centenas reunidos e algumas irmãs de caridade organizavam tudo. 

'Bendito sóis os pobres, pois é deles o Reino de Deus', dizia uma enquanto entregava crucifixos junto com agasalhos. 'A cada ano aumenta, é incrível!', dizia outra constatando a maré de desafortunados que avançava sobre a praça. 

As quentinhas foram servidas e, depois de pegar seu agasalho e o crucifixo, Zoinho foi embora em direção ao viaduto onde costumava passar algumas noites. A noite se prenunciava gélida, com sensação térmica abaixo de zero. Por isso, decidiu comprar um loló para ficar mais aquecido, usando o resto do seu dinheiro. Mesmo agasalhado, o frio começava a abraça-lo e cada aperto era uma fincada a mais pelo corpo. Por sorte, o colchão e o cobertor de Zoinho estavam bem guardados numa laje do viaduto e bastava pegar. 

Mas onde estavam? Ele procurou, procurou e nada! Vendo sua agonia, outro morador de rua deu a notícia: 'ixi, Zoinho, prefeitura veio aí e levou tudo embora! Só ficou as coisas de quem foi esperto para esconder, você não tava aqui...'. Aborrecido, Zoinho pensou no que iria fazer. Decidiu ir para casa e foi pegar o ônibus. Embarcou na porta da frente junto com outra turba para ir de graça, como sempre faziam, mas logo veio uma blitz de fiscais e policiais. Ou pagavam a passagem, ou desembarcavam. Sem dinheiro, desceu, voltando para o viaduto. 

Numa noite antes, um cara havia morrido por ali de frio e agora Zoinho temia ter o mesmo fim pois a cada minuto o frio ficava mais e mais implacável. Não havia nem como fazer uma fogueira, pois a prefeitura havia levado até a lenha e os papéis. Usou o loló e começou a orar para ver se Jesus se compadecia dele e o aquecia. Em vão! Se o Reino de Deus é dos pobres, falta avisar ao Soberano. Levantou e começou a caminhar. 

Sem  seus pertences, a maioria dos seus companheiros de viaduto havia migrado para outros lugares ou mesmo ido se arriscar nos abrigos da prefeitura, sempre lotados e sujos. Logo, porém, ele avistou um senhor já bastante velhinho que se aconchegava em uma manta grossa deitado em cima de uns papelões. Zoinho se lembrava dele, era um sujeito muito doente, quase cego e sem uma das pernas, resultado da diabetes não tratada.

Não foi possível entender muito o que se passou, apenas que Zoinho havia de supetão tentado tomar a coberta do velhinho, mas esse, tendo em sua posse uma faquinha velha, lhe retribuiu três estocadas, duas no coração e uma na garganta. 'Filho de uma égua, ladrão!'. Zoinho tombou no chão ensanguentado e antes de se formar a roda de curiosos, já estava morto. 

O amor venceu. 

(por David Emanuel Coelho) 


Um comentário:

Anônimo disse...

O humor venceu!
https://gilvanmelo.blogspot.com/2023/12/elio-gaspari-de-joaquim-brevesagro-para.html

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