Quando conquistamos a vitória nas eleições de 1985 para a Prefeitura de Fortaleza - primeira vitória do PT numa capital -, como Secretário de Finanças da Administração Popular, deparei-me com um custo operacional básico de 120% das receitas tributárias correntes, tendo que compatibilizar os justos reclames do funcionalismo e demandas sociais pendentes de atendimento desde há muito, sem que pudéssemos atendê-las substancialmente.
Dizíamos para nós mesmo, então, que poderíamos tratar com humanidade as questões e dar explicações sobre as impossibilidades materiais - financeiras - de atendimento como gostaríamos, e fazermos uma administração honesta: sem conciliação com as costumeiras maracutaias com os interesses capitalistas privados e sem conciliação de classe.
Cumprimos honrosamente este compromisso ao longo de três anos, de 1986 a 1988, do mandato tampão para o ajuste do calendário eleitoral da redemocratização burguesa, pois antes os Prefeitos eram nomeados pelos governadores indicados pela ditadura. Tivemos que colocar nos trilhos o trem virado das administrações nomeadas anteriores, fato que havia proporcionado o desencanto popular responsável por nossa vitória eleitoral, mas acabei por verificar que tínhamos que fazer o bolo sem os ingredientes necessários, com os convidados, as pessoas da cidade, já sentados/das à mesa.
Uma cidade esburacada até mesmo nos bairros ricos e uma periferia correspondente a um grande cinturão metropolitano com precária malha viária de calçamentos e asfaltos que não resistiam às chuvas por menores que fossem, sem rede de esgoto e tomada por favelas.
Além disso, a coleta de lixo era propositalmente precarizada pelas empresas responsáveis e por custos operacionais aloprados a serem pagos por um déficit orçamentário flagrante.
Naquele tempo, ainda não havia a autonomia financeira dos municípios que só viria com a Constituição Federal de 1988, a ter vigência em 1989, ano em que o Ciro Gomes assumiu uma Prefeitura saneada e com muitos projetos engavetados pelo Planalto Central do Brasil, e pôde ser catapultado a governador com apenas um ano de administração municipal.
O Presidente Sarney jamais recebeu a Prefeita Maria Luíza em audiência e o governador Tasso Jereissati preparava o seu pupilo Ciro Gomes para ser candidato a Prefeito, o que significou um completo desinteresse em ajudar uma administração que lhe era ideologicamente adversa e com dívida pública impagável. O Presidente do BNB, maior credor da dívida, nos olhava nas negociações como um agiota diante de um devedor falido.
Diante de tudo isso, eu me perguntava: o que nós, anticapitalistas no poder burguês, tendo que trabalhar com os mecanismos acima expostos, estávamos fazendo ali, além de sofrer o desgaste inevitável de administrar para o capital a escassez desse mesmo sistema?!
A pergunta que não quer calar é: tudo mudou? Mudou sim, para pior!
Hoje temos:
Prefeituras falidas;
Estados membros falidos;
União Federal com dívida pública de cerca de 84% do PIB sobre a qual incidem juros de Selic de 13,75% ao ano e paga por todos nós contribuintes;
Depressão econômica mundial;
10 anos de PIB brasileiro com média pífia de 1% a ano;
Inflação alta (principalmente de alimentos que pesa mais no bolso da grande maioria da população);
10% da mão de obra economicamente ativa desempregada;
Déficit da previdência social;
Aumento do processo de favelização das populações empobrecidas;
Índices de criminalidade insuportável para a população temerosa de sair às ruas e para o Estado que não pode custear de modo eficaz o caro processo de combate à criminalidade sem ter como prender, processar e encarcerar tantos criminosos que cada vez mais bem armados assumem o controle de regiões inteiras via crime organizado;
Centrão comandando o fisiologismo parlamentar;
e por aí vai...
Mas, como na conhecida fábula do bode na sala, apesar de todos estes problemas sentimos uma sensação de prazer de termos afastado do poder político um governante inapto e despreparado para o cargo.
Entretanto, o problema central da miséria popular permanece e com ele a cobrança dos eleitores que de há muito vivem como podem em suas estratégias sofridas de sobrevivência: a tradicional segregação social capitalista cuja lógica autotélica agora se encontra em processo de limite interno de expansão, causa da depressão econômica mundial.Tivemos um tresloucado genocida no poder político submisso ao capital e que, apesar de seu histórico discurso anticivilizatório de extrema direita, cujo discernimento cultural primário e de comprovado comportamento de mau militar - ameaçou explodir a Represa de Água do Guandu, no Rio de Janeiro -, foi eleito por uma população que oscila entre o desespero e a esperança em qualquer traste populista que se lhe apresente como salvador da pátria, até que um novo ciclo eleitoral lhe dê novas e ilusórias esperanças.
Com inegáveis avanços na questão da civilidade no trato de questões como racismo; combate aos maus tratos aos indígenas; à misoginia; evidente esforço de combate às milícias e ao crime organizado; boa vontade com a difícil questão da habitação popular; preocupação com a melhoria do nível de empregos e salários; desenvolvimento de novos/velhos programas habitacionais; relação amistosa com os contrários; etc., etc., etc, os 100 dias de governo Lula tem pela frente uma barreira de difícil transposição: a questão da economia capitalista em fim de feira.
Lula se vê diante de um dilema antigo: administrar para o povo com os recursos da escassez capitalista. Administrar a escassez significa dizer não ao que já é urgente e inadiável; é escolher prioridades quando outra prioridade preterida carece de atendimento vital, tal como um médico num hospital de guerra que atende um paciente enquanto há outro ao lado com igual enfermidade e à beira da morte, sem que o médico tenha mãos e braços para atender.
A metáfora é forte, mas verdadeira.
É graças a isto que Lula luta desesperadamente pela impossível retomada do desenvolvimento econômico, o qual significa mais capitalismo, implicando, com isso uma pressão administrativa menor, mesmo que a melhoria seja sempre insuficiente, porque o capitalismo num país da periferia econômica mundial, como é o caso do Brasil, jamais poderá proporcionar nível de sociabilidade aceitável.
Outro fator que vem sendo focado pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é a cobrança de impostos sonegados por quem deles se apropria indevidamente. Mas esta questão cheira a arrocho fiscal numa economia em depressão, e isto causa arrepios no mercado sempre ávido por lucros.
Os três meses passados não é tempo de se tirar conclusões sobre a questão econômica e seus indicadores, que não foram bons neste período, mas que se prenunciam como difíceis para o ano todo, como preveem os economistas burgueses.Não se trata de uma questão de pessimismo derrotista, mas de reflexão sobre uma realidade em que o otimismo governamental dos políticos dependentes da máquina estatal sempre escamoteiam com a promessa de tudo poder se ajeitar, pois são impotentes em sua dependência da opressão estatal da qual são partes indissociáveis.
Não é papel da esquerda anticapitalista administrar a falência do capital, pois sob o capital não há solução possível! (por Dalton Rosado)
4 comentários:
O que pensar?
https://www.nytimes.com/es/2023/04/12/espanol/brasil-armas-ucrania-rusia.html
Uma bela matéria
https://www.nytimes.com/es/2023/04/11/espanol/opinion/covid-brasil-favelas.html
Lá como cá
https://imagenes.elpais.com/resizer/vNYNYxOWCwgOcF5TX-WXJyHuM7Y=/980x0/filters:focal(299x465:309x475)/cloudfront-eu-central-1.images.arcpublishing.com/prisa/YGF362YTQRA3NB7RM2GBOWE23M.jpg
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Estou gostando do governo Lula e não porque tiraram um bode da sala.
Parece que o clima está mais ameno.
A estultice raivosa dos minions a tudo contaminava.
Até gostei do Flávio lacrando em cima deles.
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Os males do mundo continuam os mesmos com outros nomes.
Ontem o sinhozin e a escravidão.
Agora é capitalismo e o patrão.
Amanhã será a máquina e a tecnocracia.
Ou outro culpado.
Afinal, se a culpa é minha eu coloco em quem quiser.
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Este é o problema das soluções coletivistas.
Você tem que perder sua individualidade para pensar no bem comum, porém, alguns há que usam a coletividade para satisfazer sua individualidade.
Foi com isso que me deparei quando tive uma recidiva na administração de bens e pessoas no sistema público.
Como era uma segunda vez, saí assim que deu.
Considerei como um reforço na vacina contra a doença de assumir a responsabilidade pelos outros.
O que tem de malandro e mau-caráter no mundo não é brincadeira.
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Até na família, vez por outra, se toma uma invertida de parentes (as vezes muito próximos).
Parece que alguns filhes* fazem questão de destruir o patrimônio e as riquezas duramente conquistadas.
E nem aproveitam as possibilidades modernas para crescer mais rápido e melhor do que nós fizemos.
Ingratidão é pouco, acho que não existe nem palavra para dizer a opção atual, algo que traduza-se como "posso ser melhor, as coisas estão melhores, mas prefiro ser e ficar pior, parasitando os outros".
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"Ut sementem feceris, ita metes".
Cada um colhe o que planta.
Depois não adianta chorar.
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* filhes - a ideia de gênero neutro é boa. Ao invés de dizer filhos e filhas e d+, basta escrever filhes!
Sei não SF!
Trocar um bode por um sapo barbudo. Sei não!
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