Na história recente da humanidade, a França vem ocupando um lugar de destaque como vanguarda dos movimentos revolucionários. Os alemães filosofaram e filosofam, e os franceses não só pensaram como agiram, e agora novamente agem, numa simbiose de teoria e ação contributiva importante entre atuais filósofos e militantes revolucionários.
Karl Marx, judeu alemão revolucionário, quando acossado pela monarquia tirânica prussiana, no seu país de origem, exilou-se na França contribuindo para a efervescência do pensamento revolucionário naquele sítio irradiador de ideias, até que os burgueses republicanos o expulsaram de lá.
Após a França, Marx se exilou na Inglaterra, onde encontrou relativa tolerância que lhe foi capaz de proporcionar os estudos e produzir seus escritos fundamentais para a crítica da economia política obtendo informações vitais na famosa British Library, com milhares de publicações, e contando com a ajuda financeira de Friedrich Engels para seu sustento e da sua família.
O processo final de transição do feudalismo para o capitalismo da revolução republicana francesa do final do século dezoito implicava na unidade de interesses entre antigos barões feudais falidos, capitalistas emergentes e militarismo napoleônico de conquistas próprias à necessidade de expansão do capital tornando a França como epicentro das turbulências políticas europeias e das ideias socialistas que se contrapunham ao iluminismo burguês nascente.
A revolução republicana francesa foi a primeira grande manifestação popular mundial contra o poder vertical personificado então na monarquia, e ocorreu exatamente no final de século 18 por conta da pressão que a doutrina iluminista, consentânea com os interesses emergentes da burguesia e manipulando a insatisfação popular por conta da miséria causada pela tirania despótica decadente então enfraquecida.
Os fisiocratas de ascendência feudal deram lugar aos mercantilistas emergentes cujo poder e influência sociais foram capazes de conspirar e estabelecer uma organização de poder na qual o Estado, dividido em três poderes independentes e harmônicos num mesmo objetivo capitalista - executivo, legislativo e judiciário -, passaria a ser regulamentador de uma nova ordem burguesa que parecia ilusoriamente libertária por ser a negação do servilismo feudal, então reinante por toda a Europa.
O povo francês, iludido, passou a viver sob uma nova ordem jurídica de divisão do poder político sem se aperceber que um novo tipo de escravização se estabelecia: a escravização indireta do trabalho abstrato.
É na esteira da percepção teórica deste engodo que se deu o embate sobre o significado e modus operandi da nova ordem republicana para a sociedade.
De um lado, surgiram na França as várias correntes do pensamento socialista cuja filosofia doutrinária confusa e divergente em muitos encaminhamentos, e até certo ponto ingênuas, que fizeram o contraponto ao outro lado representado pelo surgimento do ciclo evolutivo do capitalismo incipiente e do que viria a ser uma constante na nova ordem: o militarismo belicista como guerra de conquista nacionalista patriótica e xenófoba, tão bem expresso nas guerras napoleônicas.
Na educada oposição ao capital surgiram os chamados socialistas utópicos, nascidos no século 18, e vivendo sob o espírito do tempo iluminista de então, que desenvolveram as bem-intencionadas e ingênuas doutrinas de justiças sociais às suas maneiras.
O primeiro deles, Saint-Simon, nascido em 1760, pregava a conciliação de classes na qual interesses operários e patronais poderiam ser convergentes e harmônicos, e de modo a que se fizessem leis nas quais todos seriam contemplados e viveriam harmoniosamente - como quer Lula e similares sociais democratas mundo afora.
Robert Owen, nascido em 1771, entendia que as ações deveriam se concentrar na educação de base, vez que reinava profundo analfabetismo entre os trabalhadores franceses recrutados a ferro e fogo do campesinato para o processo de produção industrial urbano que se iniciava, e que isto se desse dentro da uma ordem jurídica pretensamente justa sob o capital.
Charles Fourier, nascido em 1772, pregava o surgimento de uma sociedade na qual os meios de produção fossem cooperativados, a que denominou de falanstérios.
Predominava entre os denominados socialistas utópicos a ideia de boa convivência com o capital sem a compreensão do caráter autofágico e escravista espoliador do dito cujo, que se constitui numa lógica de acumulação autoritária e ditatorial abstrata que transcende qualquer ideia de boa vontade entre as partes - detentoras do capital, de um lado, e da força de trabalho, do outro - posto que disputam de modo inconciliável a apropriação do valor, representado por um mesmo objeto que lhes dá ordens: um padrão monetário qualquer denominado mercadoria dinheiro.
O trabalho abstrato é a outra face de uma mesma moeda, e a primeira e primária célula na construção do capital; são espécies de um mesmo gênero, a forma valor, e uma espécie não vive sem a outra. É por isto que precisamos superar as duas, concomitantemente.
Foi assim que surgiu o chamado socialismo científico trazido para a França pelos alemães Karl Marx e Friedrich Engels, que haviam sido expulsos da Alemanha kaiserista prussiana, e que eram revolucionários detentores de embasamento filosófico sobre a essência e natureza das relações sociais sob o capital, razão pela qual admitiam que a classe operária emergente deveria se aglutinar como força política capaz de estabelecer uma ordem político-jurídica-constitucional anticapitalista.
A Europa conflagrada pelo confronto entre monarquistas fisiocratas e republicanos capitalistas criava um ambiente no qual os atores - entre eles a Igreja Católica, então muito poderosa nu mundo ocidental - se pintava para a guerra. É neste contexto que surge, em 1848, o Manifesto Comunista de Marx e Engels: um panfleto convocatório da sublevação da classe operária contra a ordem burguesa liberal.
A ideia de um estado forte, proletário, capaz de fazer a transição para uma sociedade sem classes sociais e sem as estruturas políticas partidárias e verticais que se tornariam desnecessárias, e sem dinheiro, ou seja, voltado para a criação de uma sociedade comunista, norteava aglutinação político-partidária dos trabalhadores.
A este pensamento revolucionário se denominou como científico-social, que encontrou oposição da França de correntes de pensamentos num mesmo campo de ideais que negavam o poderio estatal bueguês e eclesiástico: os anarquistas.
Os anarquistas duvidavam da eficácia de transição a partir de um Estado forte, mesmo sem atinarem para o caráter onívoro e ditatorial da essência da relação social sob a forma valor, motivo pelo qual jamais negaram a mediação social pelo dinheiro, mas apenas a possibilidade de sua pretensamente justa distribuição, o que se constituiu como um erro doutrinário fundamental.
Personalidades como o russo Mikhail Bakunin, que perseguido pelo Czar fugira do seu país, Koenigsten, Ernest Coeurderoy, Joseph Déjacque, Elisée Reclus, Benôite Malon e Albert Richard, figuram como expressões de vanguarda da corrente anarquista francesa que se alastrou posteriormente pela Espanha e Itália onde criou raízes e de onde depois vieram para o sul do Brasil muitos dos seus membros perseguidos.
Mas o mais proeminente dos anarquistas, por suas obras muito divulgadas desde então, foi Pierre-Joseph Proudhon, que fez um libelo acusatório brilhante sobre o teor da exploração capitalista, e tem nas abras O que é a propriedade, de 1842; Sistema das Contradições Econômicas e Filosofia da Miséria, de 1846, exemplos daquilo que defendia.
Os marxistas consideravam os anarquistas pequenos burgueses ingênuos, e faziam críticas ácidas e até perseguições nos locais onde disputavam influência no campo revolucionário, e com base nas pretensamente sólidas argumentações politicistas de Marx, que chegou a debochar de Proudhon escrevendo A miséria da filosofia.
Não é por menos que foi lá que se deu o primeiro levante anticapitalista da história, a Comuna de Paris, que eclodiu em 18 de março de 1871, patrocinado pela AIT – Associação Internacional dos Trabalhadores – que tomou o poder político até 28 de maio do mesmo ano, até ser sufocada por forças da guerra franco-prussiana, adversários que se aliaram contra um inimigo comum de classe provocando a morte de milhares de communards revolucionários - vide artigo anterior sobre a Comuna de Paris.
Dando um salto na história, podemos dizer que o maio de 1968, que negou as premissas equivocadas dos rumos que tomava o chamado socialismo real da União Soviética e da China, representa o melhor da rebeldia revolucionária francesa que agora se manifesta publicamente contra medidas de restrição de direitos previdenciários e outros por conta da debacle capitalista mundial que por lá se apresenta como fenômeno resultante da inconciliabilidade entre forma e conteúdo de tal mediação social que agora encontra o seu ponto de saturação histórico.
O pensamento marxiano da teoria crítica radical à forma valor e à dissociação de gênero participa, converge e influencia o movimento social francês para o qual não é a democracia burguesa, nem o retrocesso fascista de Marine Le Pen, a solução para o povo francês, mas a revolução mundial social e ecológica capaz de se apropriar dos ganhos da ciência em favor de uma vida sustentável, digna e justa para todos os povos.
Vive la France! (por Dalton Rosado)
Um comentário:
Livro: “Primavera Revolucionária” traz à tona o drama e a ousadia de 1848
(afinal o The Economist não tem porque ser generoso)
https://www.4shared.com/s/fIpO0pzSoge
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