segunda-feira, 5 de setembro de 2022

BORIC SEGUE O MESMO CAMINHO DE ALLENDE. NOVA TRAGÉDIA À VISTA?

Mao Tse-tung, "a
revolução não é
um jantar".
 
david emanuel coelho
AS LIÇÕES DA DERROTA
 CONSTITUINTE NO CHILE
Neste domingo (4), o povo chileno votou num referendo para decidir se aprovava ou não uma nova constituição, elaborada há cerca de um ano pela assembleia eleita para tal fim. 

Negando as etapas anteriores, em que foi amplo o endosso ao trabalho que estava sendo realizado, desta vez 61% dos eleitores rejeitaram a obra finalizada numa derrota estrondosa para o presidente Gabriel Boric e os grupos de centro-esquerda líderes do processo. 

A carta trazia, contudo, avanços importantes para a população daquele país andino. Garantia direitos sociais relevantes, além de dar autonomia aos povos originários e avançar na igualdade de gênero. Em muitos aspectos, tratava-se de uma proposta de constituição correspondente aos anseios populares. 

Mas sua força era também sua fraqueza, pois, embora formalmente transformadora, a carta pecou por não estar substancializada numa mobiliação popular capaz de fazer o povo encampá-la, sendo este o primeiro grande motivo de seu fracasso. 

Quando olhamos experiências latino-americanas semelhantes de mudanças constitucionais – como nos casos do Equador, Bolívia e Venezuela –, a mudança da carta magna sempre foi acompanhada de forte engajamento popular. A marcha constituinte era respaldada pelo clamor revolucionário nas ruas e bairros populares, com o povo engajado no processo. 

Tal não foi o caso do Chile. A constituinte se tornou uma bolha, isolada do resto da população, passando paulatinamente a ser identificada com os já desmoralizados políticos tradicionais. Boric, p. ex., optou por agir antes como um líder imparcial acima das disputas, apelando apenas à cidadania, do que como um líder revolucionário. 
 
Com isso, a população não se identificou com o novo texto constitucional, deixando espaço aberto para a direita e os capitalistas promoverem sua descontrução.

A ação conservadora e apática de Boric também se estende a outros âmbitos da realidade social chilena.

Após seis meses de mandato, o ex-líder estudantil não disse a que veio, fazendo um governo praticamente em tudo igual ao de seu antecessor. 

A condução econômica foi entregue aos capitalistas, com uma espécie de Henrique Meirelles chileno sendo colocado à frente. Nenhuma reforma foi avançada e o povo não é convocado pelo presidente para participar.

O resultado desta pasmaceira é o derretimento da aprovação popular de Boric, agravado pelo momento de crise capitalista. A população chilena esperava mudanças radicais e vê não apenas a continuidade da situação de opressão econômica, mas até mesmo uma piora. 

Neste sentido, a identificação da constituinte com o presidente favoreceu a derrubada do texto, pois foi uma forma do povo mostrar sua insatisfação com os rumos do governo e com a demora das mudanças estruturais. E tudo pode piorar, pois o caminho proposto por Boric após a derrota é acentuar a guinada à direita, dando mais poder ao desacreditado congresso nacional.  

Por fim, a burguesia chilena conseguiiu o que objetivava. Numa clara ação estratégica, tinha proposto a constituinte para esvaziar as mobilizações populares, levando para o campo institucional a insatisfação popular. Aceitou cada etapa do processo e agiu meticulosamente para cindir o processo de seu enraízamento na luta de classes expressa nas manifestações de 2019.

Feito o texto, agiu para desacreditá-lo e agora, com sua derrota, pode negociar uma carta mais conservadora, em que nada mudará. O início do erro foi justamente não ter modificado as bases estruturais do poder econômico da classe dominante chilena. 

Como na década de 1970, a esquerda chilena confundiu a conquista do Estado com a conquista do poder de fato. Allende agiu erraticamente durante anos, desmobilizando sua base social, até que, quando decidiu radicalizar, era tarde: a burguesia já tinha feito seu trabalho e se fortalecido, impondo o golpe de estado. 

Que Boric siga o mesmo caminho é um sinal nefasto. Só esperemos que o desenrolar não seja tão trágico quanto foi em 1976. 

Ainda há tempo para a esquerda chilena corrigir seus rumos, mas isto passa diretamente por entender que, numa revolução, não se pode contemporanizar com o inimigo. (por David Emanuel Coelho)

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