Infelizmente, essa briga de foice no escuro pelo poder e suas boquinhas, envolvendo alianças ideologicamente aberrantes e traições despudoradas, consegue ser exemplo de tudo que é nocivo para a cidadania (além de tediosa ao extremo, agora que nos sabemos a salvo daquilo que precisávamos evitar a todo custo ...).
Um consolo é que a eleição presidencial de 2018 fixou definitivamente onde está o fundo do poço. Nunca conseguiremos descer mais abaixo do que quando elegemos o palhaço genocida.
Então, como os jornais e revistas do fim de semana se revelaram um deserto de notícias realmente surpreendentes e interessantes, a alternativa que escolhi para tais mesmice e irrelevância é o cinema. Com um dos principais marcos da contracultura nas telas: O conformista (1970), baseado num romance de Alberto Moravia, com direção e roteiro do superlativo Bernardo Bertolucci.
Depois que a mais ousada tentativa revolucionária desde a revolução russa de 1917 foi contida, a grande indagação nos círculos da esquerda autêntica era por que as primaveras de Paris, de Praga e ensaios menores na mesma direção não haviam desembocado numa nova era para a humanidade, com a exploração do homem pelo homem sendo substituída pelo reino da liberdade, para além da necessidade.
Foi quando a melhor esquerda se voltou para os teóricos que buscaram em Freud uma atualização de Marx: as contradições econômicas eram mesmo o que o velho barbudo explicara e deveriam mesmo desembocar numa profunda transformação da sociedade, mas...
...mas o capitalismo adquirira uma formidável capacidade de manipular cientificamente as consciências e os instintos, não só direcionando a formação da opinião, como também induzindo a substituição das gratificações autênticas dos seres humanos pelos sucedâneos artificiais do consumismo.
Foi aí que tivemos de garimpar explicações no campo da psicanálise, para entendermos como o inimigo conseguirá impingir não gato por lebre, mas o felino morto em lugar da lebre viva.
Pois todos os brinquedos do capitalismo são meros sucedâneos do que realmente nos gratificaria. Com todas as maquilagens e ilusões, nada fazem além de nos induzirem a aceitar a morte em vida ao invés de lutar pela vida plena..
Bertolucci foi o cineasta que melhor utilizou o microscópio freudiano para dissecar a podridão capitalista. E O conformista é sua obra máxima, com O último tango em Paris não ficando muito aquém: só deixou de obter o merecido reconhecimento por causa da grita dos(as) moralistas rançosos(as) e graças à covardia dos que tinham a obrigação de defender firmemente a arte contra todos os obscurantismos.
Bertolucci identifica o fascismo com a repressão sexual, no caso os impulsos homossexuais de um menino mimado que flertava com o motorista da família, provocando-o sem ter uma noção real do que fazia, e depois pareceu ter sido punido pelo destino de uma forma terrível.
É o temor inconsciente da punição o que o faz querer levar uma vida convencional com uma esposa (Stefania Sandrelli) que não ama, mas lhe trará respeitabilidade.
Daí aderir ao fascismo, que significava exatamente isto, a fuga aos imprevistos da liberdade, trocada por uma sociedade em que os trens chegavam sempre no horário. E daí ele se dispor, inclusive, a envolver-se com um assassinato político.
Um detalhe sutil é os ambientes do fascismo no poder terem sido mostrados como imensos, achatando todos que neles adentravam. O grande líder, como um deus pairando acima dos mortais, simbolizava aquela imensidão, o que compelia seus seguidores a se prostrarem diante dele.
Um filme obrigatório, imperdível, com uma profundidade no conteúdo e uma sofisticação na forma quase inimagináveis no cinema atual! (por Celso Lungaretti)
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