domingo, 7 de agosto de 2022

UM FILME QUE MOSTRA A REPRESSÃO DOS INSTINTOS IMPELINDO À FASCISTIZAÇÃO

Agora que a ameaça de golpe manicomial está definitivamente afastada e os blefes boçais se revelam meras chantagens ignaras de um criminoso em parafuso com a antevisão das grades, podemos escrever sobre assuntos menos desagradáveis do que a campanha eleitoral da democracia burguesa.

Infelizmente, essa briga de foice no escuro pelo poder e suas boquinhas, envolvendo alianças ideologicamente aberrantes e traições despudoradas, consegue ser exemplo de tudo que é nocivo para a cidadania (além de tediosa ao extremo, agora que nos sabemos a salvo daquilo que precisávamos evitar a todo custo ...). 

Um consolo é que a eleição presidencial de 2018 fixou definitivamente onde está o fundo do poço. Nunca conseguiremos descer mais abaixo do que quando elegemos o palhaço genocida.  

Então, como os jornais e revistas do fim de semana se revelaram um deserto de notícias realmente surpreendentes e interessantes, a alternativa que escolhi para tais mesmice e irrelevância é o cinema. Com um dos principais marcos da contracultura nas telas: O conformista (1970), baseado num romance de Alberto Moravia, com direção e roteiro do superlativo Bernardo Bertolucci.

Depois que a mais ousada tentativa revolucionária desde a revolução russa de 1917 foi contida, a grande indagação nos círculos da esquerda autêntica era por que as primaveras de Paris, de Praga e ensaios menores na mesma direção não haviam desembocado numa nova era para a humanidade, com a exploração do homem pelo homem sendo substituída pelo reino da liberdade, para além da necessidade. 

Foi quando a melhor
esquerda se voltou para os teóricos que buscaram em Freud uma atualização de Marx: as contradições econômicas eram mesmo o que o velho barbudo explicara e deveriam mesmo desembocar numa profunda transformação da sociedade, mas... 

...mas o capitalismo adquirira uma formidável capacidade de manipular cientificamente as consciências e os instintos, não só direcionando a formação da opinião, como também induzindo a substituição das gratificações autênticas dos seres humanos pelos sucedâneos artificiais do consumismo. 

Foi aí que tivemos de garimpar explicações no campo da psicanálise, para entendermos como o inimigo conseguirá impingir não gato por lebre, mas o felino morto em lugar da lebre viva. 

Pois todos os brinquedos do capitalismo são meros sucedâneos do que realmente nos gratificaria. Com todas as maquilagens e ilusões, nada fazem além de nos induzirem a aceitar a morte em vida ao invés de lutar pela vida plena..

Bertolucci foi o cineasta que melhor utilizou o microscópio freudiano para dissecar a podridão capitalista. E O conformista é sua obra máxima, com O último tango em Paris não ficando muito aquém: só deixou de obter o merecido reconhecimento por causa da grita dos(as) moralistas rançosos(as) e graças à covardia dos que tinham a obrigação de defender firmemente a arte contra todos os obscurantismos.

Bertolucci identifica o fascismo com a repressão sexual, no caso os impulsos homossexuais de um menino mimado que flertava com o motorista da família, provocando-o sem ter uma noção real do que fazia, e depois pareceu ter sido punido pelo destino de uma forma terrível. 

Então, quando adulto (interpretado por Jean-Louis Trintignant) passa a buscar obsessivamente a normalidade, pois a anormalidade era (inconscientemente, repito) tida por ele como a causa do devastador trauma  que sofrera. 

É o temor inconsciente da punição o que o faz querer levar uma vida convencional com uma esposa (Stefania Sandrelli) que não ama, mas  lhe trará respeitabilidade. 

Daí aderir ao fascismo, que significava exatamente isto, a fuga aos imprevistos da liberdade, trocada por uma sociedade em que os trens chegavam sempre no horário. E daí ele se dispor, inclusive, a envolver-se com um assassinato político. 

Um detalhe sutil é os ambientes do fascismo no poder terem sido mostrados como imensos, achatando todos que neles adentravam. O grande líder, como um deus pairando acima dos mortais, simbolizava aquela imensidão, o que compelia seus seguidores a se prostrarem diante dele.

Um filme obrigatório, imperdível, com uma profundidade no conteúdo e uma sofisticação na forma quase inimagináveis no cinema atual! (por Celso Lungaretti)  

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