(continuação deste post)
Como cumprir o preceito constitucional da distribuição de lucros empresariais entre os trabalhadores, se a concorrência de mercado está a impor a redução cada vez maior da média de renda dos trabalhadores no Brasil e a necessidade de investimentos crescentes em capital fixo (máquinas, pesquisas tecnológicas, instalações, etc., como disse Marx)?
Como se estatuir um salário-mínimo capaz de prover o sustento digno da família de um trabalhador, se a concorrência de mercado determina ao mundo político a redução dos direitos trabalhistas para fazer frente à mesma concorrência de mercado, e ainda sob o argumento de que isto beneficia o próprio trabalhador, numa lógica segundo a qual menos é sempre mais (idem para a previdência social)?
Numa realidade social de desemprego estrutural renitente (que no Brasil oscila entre 12 e 14 milhões de desempregados crônicos) e de falência estatal crescente (vide aumento da dívida pública e dos juros desta) como garantir o preceito constitucional de garantia de direitos sociais pelo Estado como educação de qualidade, de saúde, de trabalho, de moradia, de lazer e de segurança, de previdência social, de proteção à maternidade e à infância e aos desamparados?
Como assegurar o cumprimento da norma constitucional de igualdade das relações de trabalho entre os sexos, se até as crianças e o trabalho escravo são hoje cada vez mais presentes na produção de mercadorias Brasil afora?
Sendo intermináveis os exemplos de incapacidade social de cumprimento das boas intenções constitucionais pela economia capitalista, abstenho-me de citar todas.
Há, portanto, uma grande dose de hipocrisia quando ouvimos magistrados incumbidos da preservação do cumprimento das normas constitucionais se restringirem apenas àquelas normas cujos cumprimentos são passíveis de exigência de exequibilidade, mas fazendo vistas grossas àquelas que dizem respeito aos benefícios sociais impossíveis de serem cumpridos pela ordem capitalista que os entronizou no mais alto cargo da magistratura nacional.
Há quem condene a constituição pela direita, ou seja, criticando-a pela benevolência econômico-financeira impossível de ser cumprida, e até quem queira rasgá-la (como fizeram os militares em 1967, e logo após, em 1969, uma Emenda Constitucional que fechou ainda mais o que já estava fechado) e lhe emprestar cunho ditatorial de poder centralizado e despótico.
Mas, quando falo da necessária mutabilidade constitucional, faço-o como reflexão sobre a necessária adequação da norma fundamental à uma realidade social que possa se beneficiar dos ganhos da ciência e não da precarização da vida social em face do desenvolvimento dessa mesma ciência.
A robotização na produção não é, em si, danosa à vida humana. Mas a lógica do capitalismo determina que quem não produz, não coma, contrariando a sua própria constituição que diz proteger o trabalhador, enquanto garante a mediação pela forma-valor e seu correspondente lucro, a acumulação excludente do capital e a extração de mais-valia.
Expressivos contingentes de trabalhadores são levados à marginalidade pela robotização, que causa o desemprego estrutural e transforma a tecnologia, que deveria ser um benefício social, em algo altamente destrutivo da vida e da própria lógica capitalista, em flagrante contradição autotélica.
Observamos nos dias de hoje uma dicotomia e disputa entre correntes de pensamentos e doutrinas políticas na questão da obsolescência de institutos jurídicos constitucionais que perderam a sua eficácia.
Uns querem rasgar a constituição para um projeto de manutenção autoritária da vida social capitalista. Não precisamos aqui fazer a denominação adjetiva destes grupamentos, de vez que eles se manifestam claramente em proposições conservadoras (homofóbicas; racistas; misóginas; militaristas; ditatoriais; e anticivilizatórias por essência).
Há os que querem que o pé de caju dê manga, ou seja, pretendem que se cumpra a constituição e todos os seus ordenamentos democrático-burgueses, sem considerar a obsolescência destes mesmos fundamentos em face da dinâmica social. Nada mais almejam do que usar as categorias capitalistas às quais dizem fazer oposição para a simples manutenção delas mesmas e dos espaços e migalhas conseguidas por estes com discursos populistas.
Discutir a obsolescência da constituição burguesa em face da decadência do capital e seus danos sociais e ecológicos evidentes é imperioso nos dias atuais, e não deve ser confundido com arroubos autoritários de quem quer andar para trás, como caranguejos numa corda na qual todos se mexem e não saem do lugar.
Os defensores da constituição burguesa (mais ou menos concessiva de direitos sociais) estão para ela tais quais os fundamentalistas religiosos estão para uma leitura ao pé da letra dos seus documentos religiosos.
Há um espírito do tempo pairando no ar e anunciado a boa nova. Há que se beber a tempestade e não temê-la. (por Dalton Rosado)
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