dalton rosado
SOBRE A IMUTABILIDADE DA CONSTITUIÇÃO
Todas as leis refletem o pensar (ou o não querer pensar crítico) de uma conjuntura determinada no espaço e no tempo. Tentam combinar a dominação do poder instituído com um determinado (e mutante) conceito social vigente de moral de justiça.
Há leis que num determinado momento são tidas como aceitáveis e noutros momentos não o são.
Já houve no Brasil um período no qual a lei assegurava a propriedade de um ser humano por outro, caso dos negros trazidos sob correntes em navios negreiros e que já desembarcavam (quando não morriam no trajeto) nos portos brasileiros como mercadorias a serem vendidas.
Entretanto, apesar de segregados em sua maioria ainda hoje (basta um senso demográfico nas prisões para se ver a desproporcionalidade de presos negros e pardos em relação aos brancos), os brasileiros da etnia africana já não são hoje propriedade de ninguém, e não se admitiria a volta de tal instituto jurídico feudal.
A mutabilidade sociojurídica das leis obedece, portanto, à mediação entre o poder dominante instituído e aquilo que o senso comum social começa a entender como algo a ser necessariamente modificado.
Neste sentido, é nocivo o endeusamento que se faz da permanência e respeito à imutabilidade da constituição numa era social na qual se observa a decadência de um modelo de relação social que se torna obsoleto pela contradição dos seus fundamentos.
O sentido último de manutenção de um status quo resultante da mediação social escravista desde antanho está corporificado na própria constituição federal (também conhecida como carta magna e obedecida como se fosse o graal da santidade).
Ela é elaborada por uma assembleia constituinte eleita pelo processo de representação político-partidária como expressão da vontade popular manipulada num processo eleitoral dominado pelo poder político-econômico, principalmente vigente nas oligarquias no Brasil profundo, e socialmente segregacionista).
A constituição de cada país reflete, portanto, a realidade da mediação social vigente ao momento no qual ela foi instituída.
Uma dedução lógica é a de que na constituição de uma sociedade capitalista, de forma explícita ou implícita, prevalecem juridicamente os interesses do capital; então, sendo o capitalismo uma relação social injusta, a constituição nele inspirada é igualmente injusta na sua essência, e aqueles dispositivos legais nela insculpidos que contrariem tal interesse se tornam letras mortas (e não são poucos os que têm tal destino).
Há quem considere que o princípio do direito romano, expresso no brocado a lei é dura mas é lei, é melhor possível para dar um regramento à vida social, sem considerar que a lei é algo mutável. Os dominantes gostariam que a vida social pudesse ser paralisada como numa fotografia.
Mas, para a infelicidade deles, as relações sociais são dinâmicas e estão em permanentes mutações.
Agora, como consequência do desenvolvimento acelerado das ciências aplicadas à vida social, a obsolescência dos diplomas constitucionais obedece à mesma dinâmica, pois não é a lei que formata a sociedade (como querem muitos elitistas conservadores), mas é a sociedade que formata as leis.
As imperfeições constitucionais burguesas são flagrantes.
Como se admitir, p. ex., que os magistrados que vão decidir sobre a constitucionalidade dos atos políticos sejam indicados e escolhidos por aqueles cujos atos vão estar sob seu crivo? É evidente que a identidade ideológica dos escolhidos e a pretendida gratidão pela indicação compromete a isenção jurisdicional que deve nortear a ação jurisdicional!
Mas a vida econômica dá ordens não apenas para a vida política, mas também, para a inviabilidade de preceitos constitucionais incompatíveis com a dinâmica da saturação de um modelo social capitalista que agora atingiu o ponto de dissociação inconciliável entre forma e conteúdo. (por Dalton Rosado – continua neste post)
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