seria preciso reinventar o sol, a chuva, a floresta, o amor, a vida, o delírio... sentir de novo o sangue ferver, o corpo inteiro latejar, em fúria, em beleza, num mergulho tão profundo que apagasse tudo, as derrotas, a violência dos porões e o tédio das pequenas traições diárias repetidas e esse caminhar sem objetivo nas terras do marasmo colorido
ser de novo homem e mulher, uma perfeição que se esgota em suspiros e êxtases, o céu azul, o verde da natureza e o espelho dos mares, ah!, esse absurdo penar quando tudo seria tão simples, eu e você, num abraço, num só laço, um só corpo, que se completa, consome, fragmenta e recompõe, para além do horror e da morte, no tempo eterno do sonho, do sexo, da loucura ou da divindade
neste invólucro/quarto fechado amamos escondidos, sucumbidos, angustiados, sabendo que lá fora nos espera mais um dia de trabalhos inúteis, esperas e desencontros, catálogos e etiquetas, blocos que desabam sobre nossas cabeças com o peso das verdades petrificadas, pronunciamentos oficiais e tabelas de preços, nessa confusão ofegante, luzes e clarins, sonhos macabros e mortíferos, civilização da miragem e da agonia, que nos esvazia em cada secretária-zumbi de cada executivo que não nos quer receber, nem ver, nem ser, quanto medo atrás de tanto óculos
no teu corpo me contemplo e me vejo belo, e te vejo bela, e te sinto minha, em meio ao caos e ao medo eu te tomo, te abraço e penetro, e me sinto, e te sinto, perdido, encontrado, dilacerado e ainda assim invicto – lutador e quixote de um mundo em derradeiras convulsões – procuro a chama que me evoque o começo dos tempos e o elo pedido da felicidade e prazer, amo logo existo, trepo logo vivo, sonho logo sobreviverei, sou livre logo me matarão.
tocaram a campainha. os dois permaneceram se amando. um, dois, vários toques. golpes na porta. seus corpos suados de amor, na plenitude e no abandono, entre a morte e a vida, os sentidos fragmentados, eles unidos, no êxtase aguardado, sonhado, total, final
a porta cedeu. engatilharam-se as armas. mas nem os disparos conseguiram separá-los. depois de mortos, desfiguraram-lhes os rostos, pois não conseguiram suportar a expressão de triunfo que neles ainda perdurava
amarelado pelo tempo, quase ilegível.
Utilizando o verso de uma folha de press release, ainda por cima! Eu provavelmente estava numa fase de vacas magras, para evitar gastos tão ínfimos. Enfim, pelo menos serviu
para eu descobrir o ano do manuscrito: 1975.
E afinal me recordei de que, após passá-lo a limpo, eu o inscrevi num concurso de contos eróticos da revista Status, apesar de o fim do mundo ser uma possibilidade mais plausível naquele momento do que eu obter a vitória com algo tão discrepante do que
os promotores queriam receber.
E hoje, de que serve publicá-lo? Sei lá. Talvez para ser fiel ao jovem revoltado e sonhador que
eu era quando escrevia assim de estalo, sem parar para pensar, buscando a
autenticidade acima de tudo e ainda longe do formato profissional
que meus textos adquiririam com o tempo.
Mesmo depois dos horrores de minha temporada no inferno, ainda era um bocado ingênuo. O que não me impede de
agora sentir saudades daquele período de tantas
indefinições e de sentimentos à
flor da pele. (CL)
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