quarta-feira, 10 de novembro de 2021

MARIGHELLA VIVE

M
esmo 52 anos depois de assassinado, Carlos Marighella vive. 

E vive por meio do filme de Wagner Moura, lançado mais de dois anos depois de ter a sua primeira exibição pública, no Festival de Berlim de 2019. As sessões têm sido encerradas com palmas e gritos de Fora Bolsonaro em diversas cidades do país. 

Cabe registrar também a presença de pelo menos um bolsominion em João Pessoa (PB): ele investiu contra a tela ao grito de fora, comunistas! e foi escorraçado pela plateia. 

O filme tem sido debatido não apenas por críticos de cinema e cinéfilos, mas por colunistas políticos e jornalistas de outras áreas. Wagner Moura deu entrevista no Roda Vida, no programa do Juca Kfouri na TVT e em outras mídias. 

O público aproxima-se dos 100 mil pagantes, apesar do boicote do governo e da estrutura desigual dos multiplexes, preparados para receber as franquias de super-heróis mas não a saga de um herói brasileiro (a expressão não é minha, é de Antonio Candido Mello e Souza, o maior crítico literário do país). 

Enfim, Marighella faz seu caminho na memória brasileira, por meio das biografias de que foi personagem (a de Emiliano José e a de Mário Magalhães), além de um documentário de Silvio Tendler e outro rodado por sua sobrinha, Isa Ferraz. 

Vive também na lembrança daqueles que lutaram e sobreviveram àqueles tempos, e nos registros históricos do tempo da ditadura. 

Para esculpir seu personagem, Wagner Moura baseou-se na extensa biografia escrita por Mário Magalhães, fruto de quase dez anos de trabalho. A obra é detalhista e vai da infância do personagem em Salvador à morte por emboscada no dia 4 de novembro de 1969 na Alameda Casa Branca, em São Paulo. 

Impossível transpor todo o material para a tela. Daria uma série com pelo menos três temporadas. Moura concentra-se nos anos finais de Marighella e no cerco à guerrilha pelos órgãos de repressão. 

Não faz uma hagiografia, o que é diferente de ser imparcial, ou isentão, como se diz. Está ao lado do personagem, mas não fecha os olhos para seus aspectos problemáticos. 

Talvez o mais agudo diga respeito à opção pelo confronto armado numa correlação de forças para lá de desigual. A ideia é debatida no filme. Apesar da desigualdade, as ações guerrilheiras seriam como um estopim para a adesão das classes populares à luta, acreditava Marighella. Isso não aconteceu. O
foco não funcionou. 

É um tema que vem sendo debatido pela esquerda brasileira desde a liquidação final da resistência à ditadura, em 1974. 

O historiador e ex-guerrilheiro Jacob Gorender, em seu clássico Combate nas Trevas lembra que a esquerda pegou em armas em 1935 e no período 1968-1974, sendo derrotada. "A esquerda brasileira de inspiração marxista só não pegou em armas quando as condições históricas determinaram que o fizesse”, escreveu ele. 

Ou seja, na deflagração do golpe de 1ºde abril de 1964, quando havia um movimento de massa progressista e poderoso que, no entanto, não se preparou para resistir à investida reacionária. Se tivesse havido resistência ao golpe, no calor da hora, com os golpistas ainda inarticulados, talvez a história fosse diferente. Como não existe o se da História, a inação da esquerda, naquele momento, foi decisiva para a consolidação do golpe de Estado que depôs João Goulart e instaurou a ditadura. 

Pois foi a inação que levou à ruptura de Marighella com o Partido Comunista pelo qual se elegera deputado federal em 1946. Foi um dos fundadores da Ação Libertadora Nacional e voltou-se para o enfrentamento armado do regime, já então consolidado. 

Marighella e seu grupo praticaram a violência armada contra a violência estatal da ditadura. Cabe lembrar: uma ditadura só se instaura e se mantém pelo uso da violência. O enfrentamento com as mesmas armas é, portanto, ético. Mas não se trata disso e sim de saber se é o enfrentamento mais eficaz, dada a gigantesca diferença de forças envolvidas no combate. 

Trapalhões: tamanho era seu medo do Marighella que os
tocaieiros do Fleury mataram duas pessoas além do alvo.
 
De qualquer forma, Carlos Marighella era um homem de ação e não de gabinete. Neste sentido, parece não apenas razoável como inevitável que Wagner Moura fizesse de Marighella um filme de ação. 

Tal é o foco, embora outros aspectos da personalidade do personagem também não estejam esquecidos, como o escritor, o poeta, o pai devotado ao filho, o homem dotado de raro senso de humor em meio ao perigo. Um ser humano é complexo e não apenas um ser político, dedicado somente àquilo que julga ser a sua missão. 

A opção de Seu Jorge para o papel me parece outro acerto. O escolhido seria Mano Brown, mas parece que a agenda artística atrapalhou. Ficou com Seu Jorge e ficou bem. Ele tem a intensidade, a melancolia e o humor em doses exatas para emprestar espessura ao personagem. Adiciona camada antirracista à história de um opositor da ditadura. 

A narrativa é eletrizante, porém com pontos de repouso e reflexão. A questão familiar está presente no relacionamento entre Marighella e o filho Carlos, mandado para Salvador para sair da perigosa efervescência política de São Paulo, onde o pai era procurado como o grande troféu da ditadura e onde veio a morrer. 

Marighella tem sua causa, seus parceiros e parceiras (Ana Paula Bousas e Bella Camero, Luiz Carlos Vasconcellos, Humberto Carrão, Jorge Paz), sua mulher, Clara (Adriana Esteves) e também seu antagonista, Lúcio (Bruno Gagliasso). Todos estão muito bem na fita. 

Quem se queixar da falta de nuances no feroz Lúcio, deve se lembrar do personagem real em que se inspira, o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Visto o modelo original, o filme até pega leve com ele. 

O filme é todo um mergulho no ambiente febril do final dos anos 1960. A meu ver – e este é dos seus maiores méritos – consegue recriar esse clima de tensão mesclada às esperanças mais disparatadas. Terror e esperança, medo e euforia, essas misturas improváveis, difíceis de alcançar nas recriações cinematográficas do período. 

Também me parece acertada a opção por um cinema de diálogo popular e não por uma obra mais fechada, esotérica. Vivendo em meio à distopia atual, parece de bom senso construir um filme que dialogue com uma plateia de amplo espectro, faça-a reviver um período histórico chocante pelo qual uma estranha parcela da população se sente nostálgica – mesmo não a tendo vivido. 

E que outra parcela se identifique com quem ousou enfrentar um poder maior e injusto, mesmo com possibilidades nulas de êxito. A pior derrota, lembrava outro líder, Luiz Carlos Prestes, é aquela que se dá sem luta. 

A repercussão do filme sugere que sua estrutura foi bem pensada levando em conta o tema, o personagem e o momento histórico. Sua eficácia política parece inegável. (por Luiz Zanin Oricchio, n'O Estado de S. Paulo)
.
TOQUE DO EDITOR – Como ex-crítico de cinema, deveria ser eu a escrever sobre este filme em especial.  Mas, desde que ele foi disponibilizado ainda em maio neste blog (no qual, aliás, os links para ele ser baixado continuam ativos), eu, por uma infeliz coincidência, não consegui compreender suas falas exatamente em razão de algo presente até demais naquele período e na vida desse personagem: as torturas.

Tentei de novo nos últimos dias, em vão. E também não consegui encontrar uma legenda em espanhol que me servisse de muleta. Daí, como seria leviandade eu comentar o que nem sequer compreendera direito,  optei por recorrer à crítica do Zanin, a melhor que eu encontrei por aí, para que os leitores não deixassem de encontrar no blog o que muitos certamente viriam procurar aqui. (CL)
A canção que Sérgio Ricardo dedicou a outro dos grandes
comandantes da luta armada  brasileira cai como uma luva
também para o Marighella, inclusive por causa do seu título  

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