Esta é uma das fotos tremidas que o fotógrafo do Correio da Manhã corajosamente tirou |
Já tinha escapado tantas vezes. Por que não dessa? Tinha que pensar rápido. Pela porta da frente não teria chance, e a saída lateral parecia temerária.
Não ligou para o filme que arrancava gargalhadas do público infantil. Até que a projeção foi interrompida e as luzes se acenderam.
O cinema não se ilumina por acaso, nem o projetor falha ou o projecionista se atrapalha na troca de rolos. A pane é uma farsa...
...Simulado o defeito na projeção, as luzes se acendem, e os caçadores vislumbram a caça.
De pé, por trás e pela direita de Marighella, sentado na cadeira, um policial ordena-lhe que o acompanhe. Outro cerca-o por trás, pela esquerda. À sua frente, o terceiro mostra a carteira com as iniciais do Dops. Tudo num instante. O quarto, ao lado do que dá a carteirada, agacha-se e aponta o revólver calibre 38. Marighella pensa que vai morrer e grita:
"Matem, bandidos! Abaixo a ditadura militar fascista! Viva a democracia! Viva o Partido Comunista."Não terminou, pois o agente dispara à queima-roupa. Ferido no peito, Marighella equilibra o corpo na perna esquerda e, com a direita, acerta um golpe que joga longe a arma. Outro chute destrói uma cadeira. Seus sapatos voam longe.
Os policiais o chutam e esmurram, ele não cai e retribui as agressões. Um gosto adocicado tempera sua boca. É o sangue que o empapa. No rosto, o sangue turva a visão, e Marighella tem a impressão de que enfrenta ao menos sete.
São oito, somam testemunhas. Não consegue ver a face dos tiras e nunca poderá identificá-los.
O tiro foi um, mas o sangue escorre por três perfurações. A bala entrou no tórax, saiu pela axila e se alojou no braço esquerdo. Marighella continua a lutar.
Como um leão, compara um dos contendores que tentam imobilizá-lo. Outro berra, encolerizado: Vermelho! Vermelho!
Com a altercação, o público se vira, ouve o tiro e enxerga o clarão que ele acende...
Dominado, com a camisa desabotoada e já sem o paletó ensanguentado, Marighella é puxado pelos policiais para fora do cinema. O fotógrafo do Correio da Manhã que passeia com a filha empunha a câmera, mas os policiais o ameaçam e impedem de registrar a cena. Corajoso, logra fazer algumas chapas, tremidas...
Quase na calçada, Marighella reconhece a camionete do Dops e decide: Não vou entrar no "tintureiro". É a expressão popular para os veículos da polícia destinados à condução de presos.
A resistência não tem fim. Empurrado, apoia as pernas no teto da viatura e não entra. Leva mais pontapés e socos. Já são catorze homens contra um. Ao cair, pisoteiam-no, e o corpo avermelha a calçada.
Transeuntes protestam. Os passageiros de um lotação os imitam e são corridos por policiais que surgem de todos os cantos. O secundarista Alcides Raphael, que assistirá à sessão das seis horas, estima em cinco minutos o tempo para o homem que luta sozinho ser embarcado – o Correio da Manhã cronometrou dez minutos de espancamento.
Marighella só para quando lhe acertam uma pancada na cabeça e ele desmaia.
Chega apagado ao Hospital Souza Aguiar. Policiais militares com metralhadoras esperam o tintureiro 964 do Dops. Ao deparar com o corpo imóvel, os médicos não sabem se está vivo ou morto. Tomam-lhe os sinais vitais e o socorrem.
Os plantonistas do maior pronto-socorro do país custam a crer que aquele cinquentão, ferido, encarou tantos policiais mais jovens. A bala atingiu a ponta da costela e por pouco não perfurou o apêndice xifoide, o que poderia ter lhe custado a vida.
Com perda abundante de sangue, são incertas as perspectivas..."
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(prólogo de Marighella – o guerrilheiro que incendiou
o mundo, a excelente biografia de Mário Magalhães)
Um comentário:
https://www.jb.com.br/colunistas/entre-realidade-e-ficcao/2021/11/1033999-o-encontro-das-revolucoes-de-marighella-e-nise-da-silveira.html
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