O militante clandestino, que uma peruca mal encobre, travando um solitário combate nas trevas |
No personagem de Jardel Filho, Glauber Rocha representava os velhos militantes desiludidos porque suas lideranças os haviam abandonado e que só encontravam caminho pelo enfrentamento armado.
Décadas depois, outro filme vem agora abordar em retrospectiva o engajamento daqueles militantes na guerrilha, por meio de um seus principais representantes: Marighella.
Comunista de velha cepa, deputado constituinte, o baiano não engoliu a rendição das lideranças do PCB ao golpe militar e decidiu que o caminho era a derrubada pela força do regime de exceção. Seu fim trágico pode ser considerado como a realização do discurso de Paulo Martins.
Mas o filme de Wagner Moura não é um simples tributo ao Marighella militante. Na verdade, vemos em tela o homem Marighella em toda sua multiplicidade e complexidade: o amante, o pai, o humanista, o estrategista, o piadista, o encolerizado, enfim, o homem comum, com suas grandezas e fraquezas, erros e acertos.
Esta abordagem fornece realismo ao personagem, que é muito bem interpretado por Seu Jorge. Marighella não é endeusado ou colocado num pedestal, muito menos demonizado. Ele aparece enquanto alguém movido por altos ideais éticos, mas também com uma boa dose de irrealismo.
Os limites e possibilidades da guerrilha são bem apresentados nos debates travados entre Marighella e seu companheiro de longa data do PCB, Jorge, o qual não adere à luta armada, e entre o guerrilheiro e Frei Henrique. Toda a questão da desproporcionalidade de forças e do isolamento social das guerrilhas é ali colocado de modo patente, numa síntese cinematográfica razoável.
Marighella não nega estes dois fatores, mas, com uma fulgurante centelha de esperança, acredita que sua luta poderá fazer levantar o povo brasileiro. Acima de tudo é preciso, defende ele, mostrar que há gente lutando contra a ditadura, que nem todos se acovardaram.
Um a um, no entanto, os membros da ANL vão caindo. Torturados e mortos, com suas famílias e amigos sofrendo violências bárbaras, o fim trágico da luta vai sendo anunciado, o que leva Marighella a apressar um recuo estratégico e, logo, a cometer erros, culminando em sua morte.
Sabemos que, de modo geral, o enredo das guerrilhas foi semelhante. Variando o tipo do desfecho e o maior ou menor acerto, os combatentes tiveram uma dinâmica e um fim semelhante ao de Marighella.
Daí o filme, em minha visão, não ser apenas uma cinebiografia do político baiano, mas muito mais uma visão panorâmica da luta armada em si mesma.
No fim, tanto os defensores da guerrilha, quanto seus opositores estavam igualmente certos. Tratava-se de uma tragédia histórica, então a vitória era mesmo impossível, não deixando, contudo, de ser imperativo que aqueles valente se lançassem coerentemente à luta. Marighella mostra esta tensão em sua concretude humana, em sua ação e em sua morte.
Sabemos que a ditadura fez água não muito tempo depois da aniquilação definitiva das guerrilhas. O milagre brasileiro gorou e a inflação galopante logo jogou às ruas milhares de pessoas, além de fomentar greves titânicas ao redor do país.
No entanto, quando isto ocorreu não havia mais guerrilhas. Ou seja, existe aí um paradoxo, pois as guerrilhas apareceram quando o movimento popular refluiu e não ressurgiram quando este voltou à cena. Seria reinante no Brasil um descompasso entre a força das armas e a força do povo?
Certo mesmo é que o filme de Wagner Moura, com sua bela fotografia, boa ambientação de época e interpretação esmerada de seus atores serve para refletirmos sobre a relação entre o que é possível e o que é imperativo, entre a esperança do ideal e a adversidade do real.
Uma reflexão mais do que necessária na época vivida por nós, quando o delegado Lúcio (ersatz do carrasco a que a repressão da ditadura recorreu por causa da expertise que adquirira comandando as chacinas do Esquadrão da Morte, Sérgio Paranhos Fleury) e seus exterminadores voltaram para completar o serviço de terror, atrocidades, violência e morte. (por David Emanuel Coelho)
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