domingo, 24 de outubro de 2021

COMO A MISÉRIA NÃO É POR SI SÓ REVOLUCIONÁRIA, PRECISAMOS REINVENTAR A REVOLUÇÃO – 2

(continuação deste post)
A
s pessoas com fome começam a compreender o porquê de não termos alimentos para a população numa nação que é hoje uma dos grandes produtoras de alimentos do planeta (responsável por cerca de 18% de todo o consumo mundial) e num país que tem mais gado do que gente, cujo povo, contudo, há muito não pode comer carne, comer queijo e tomar leite. 
Tal distorção ocorre:
— porque temos 27 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, catando lixo, ossos e pés de galinha rejeitados;
— porque pagamos aos credores juros tão caros, sobre uma dívida que já atinge 84% do PIB nacional;
— porque aqui se restringem direitos previdenciários, em nome do equilíbrio das contas correspondentes;
— porque se restringem direitos trabalhistas em nome do próprio direito ao trabalho (que é a fonte de toda a construção capitalista) num país de quase 15 milhões de desempregados e outros tantos que desistiram de procurar vagas e se viram fazendo bicos na informalidade;
— porque temos um procurador da República que, repetidamente nomeado para o posto em detrimento da tradicional escolha entre seus pares, minimiza ou omite a denúncia de flagrantes crimes de responsabilidade de quem o nomeou; 
 porque temos um ministro da Economia que não confia no Brasil e manda a sua rica dinheirama para um paraíso fiscal;
 porque os lucros dos bancos (tendentes todos a falirem no futuro) são simplesmente exorbitantes;
 porque a inflação come no prato de trabalhadores como o maior confisco de renda familiar desde a implantação do Plano Real em 1994;
— porque a nossa moeda é a que mais se desvaloriza perante o dólar estadunidense, dentre as das nações economicamente mais importantes;

— porque os trabalhadores rurais não têm terras para plantar em economia familiar de subsistência;
 porque, além de não se franquiarem terras para quem nela precisa plantar, o mercado agrícola não permite a concorrência de produtos agrícolas produzidos em âmbito familiar e com baixa produtividade em razão da falta de irrigação, máquinas, defensivos agrícolas, etc.;
— porque as terras urbanas, como mercadoria, são tão caras e inacessíveis à aquisição pelos trabalhadores assalariados de baixa renda, os quais muito menos têm dinheiro para a construção de suas moradias com infraestrutura urbana minimamente condizente com a dita modernidade (a favela é um subproduto histórico desse tipo de propriedade territorial urbana);
— porque a criminalidade aumenta diante da debacle capitalista;     
— porque, porque, porque...

O maior problema é que a miséria não é por si só revolucionária, até porque, se o fosse, o Haiti estaria há muito emancipado. Assim, precisamos reinventar a revolução!

Não há dúvidas de que a conscientização sobre o que nos aflige e a necessidade das ações para a extirpação da causa dessa aflição é a força em torno da qual a sociedade deve agir. 

A consciência do móvel da opressão é revolucionária (isto não significando, contudo, que o que vem a seguir seja necessariamente a solução dos problemas). 

O povo francês faminto no final do século 18 e início do século 19 destituiu a monarquia feudal-clerical e colocou em seu lugar instituições que logo se tornaram tirânicas (como o Diretório e o Conselho), acabando por estabelecer-se o absolutismo bonapartista, até que o republicanismo burguês prevaleceu e se consolidou em razão de uma nova ordem econômico-social emergente: o capitalismo.  
O povo russo, faminto em razão da participação do seu país na 1ª Guerra Mundial, aderiu a um projeto político revolucionário de ruptura social e abraçou uma nova estrutura de poder político pretensamente proletária, sem aperceber-se de que o próprio proletariado, sinônimo da trabalho abstrato produtor de valor (a foice e o martelo que o digam!). era resultante de um modo de produção social que manteria todas as categorias capitalistas intactas, ainda que sob um governo pretensamente popular e proletário. 

A China idem, logo após a 2ª Guerra Mundial e sob a mesmas circunstâncias. 

Neste início do século 21 grassa a fome e o desespero, agora acrescido de uma perigosa ameaça mundial de destruição do ecossistema. Ou seja, a antiga miséria até se intensifica, mesmo com todos os avanços tecnológicos propiciados pelo acúmulo de saber da humanidade (e até mesmo por causa dele, no caso da transformação tecnológica da produção social).

A nós cabe descobrirmos a forma de promovermos a grande ruptura com o que está posto e sabermos o que colocar em seu lugar. 

A primeira questão a se considerar é a de que a destrutibilidade social e autodestrutibilidade da forma econômica e política capitalista precisa ser superada mediante a criação de um modo de produção voltado para a satisfação das necessidades humanas sociais, sem dimensão de valor, de modo ecologicamente sustentável e a partir de uma organização jurídico-constitucional que lhe seja imanente. 

A segunda questão é como fazer para consegui-lo. Então, partindo da exclusão do que não serve, mas está posto, podemos conjeturar como devemos proceder. Está claro:
— que devemos superar as mercadorias e o mercado; 

— que devemos superar o Estado vertical cobrador de impostos e opressor; 
— que devemos superar o trabalho abstrato produtor de valor (a mercadoria força de trabalho); 
— que devemos superar a maior parte dos nossos códigos jurídicos civis, porque baseados na propriedade; 
— que devemos superar a propriedade e admitirmos o direito de posse produtiva como critério de detenção pessoal e coletiva dos bens servíveis à vida pessoal e social; 
— que, por consequência, devemos superar toda a institucionalidade erigida em torno do capitalismo, aí incluídos os partidos políticos que se dizem anticapitalistas, mas que são dele dependentes.

Somente poderemos instituir uma organização de produção social e de instituições jurídicas de base com o povo assumindo os ganhos e perdas de sua própria administração e responsabilidade, a partir de uma construção mundial que seja hegemônica e patrocinada por pessoas e organizações civis desatreladas da mesmice a que foram doutrinadas, e conhecendo os novos caminhos a serem seguidos. 

Será um processo lento e gradual, sem rupturas abruptas e inconsistentes, mas consolidadas a cada direito conquistado e com experiências de produção e consumo fora da lógica do valor e com a resistência consequente à oposição ferrenha que advirá das forças estatais desinteressadas neste processo. 

A subjetividade do sujeito revolucionário está ainda para ser descoberta na sua integralidade, mas certamente mora nas consciências humanas coletivas e dispostas a superar a tempo tudo que a aflige. (por Dalton Rosado) 
Gomes Brasil interpreta mais uma composição do Dalton

2 comentários:

SF disse...

Bem, Dalton, alguma proposta é melhoor do que nenhuma.
Estacionados na crítica do ruim não faremos avançar o bom.
Você assevera que "A primeira questão a se considerar é a de que a destrutibilidade social e autodestrutibilidade da forma econômica e política capitalista precisa ser superada mediante a criação de um modo de produção voltado para a satisfação das necessidades humanas sociais, sem dimensão de valor, de modo ecologicamente sustentável e a partir de uma organização jurídico-constitucional que lhe seja imanente".
Neste parágrafo e nos posteriores você propõe o coletivismo substituindo o individualismo, no meu entender.
E embute nesta coletividade a imanência de uma organização jurídico-institucional que será decerto muito bem intencionada, mas que sabemos descambará na oligarquia e nos males dela decorrentes.
O que precisamos é de entender a Lei de causalidade e suprimir o regramento minuncioso da vida do indivíduo.
E isso pressupõe alguém que está disposto a aprender a aprender, e não obedecer.
Veja que até a regra de ouro comporta exceção.

celsolungaretti disse...

Caro SF,

a tirania social sistêmica (há outras relacionadas com religião, racismo, costumes, et.) havida ao longo dos últimos milênios consiste na concepção social de como acumular riquezas segregando quem as produziu.

A acumulação da riqueza material, quando ainda não era expressa substancialmente em valor (antes do escambo), causou a escravismo direto, e era obtida pela força de grupos dominantes que escravizavam os seus semelhantes e os subjugavam à produção social. Assim, se passou a ter grandes domínios territoriais (sem o conceito jurídico de propriedade que veio depois, mas algo similar) e sociais somente possível com a escravização segregacionista de parte da população.

A acumulação da riqueza abstrata propiciou a acumulação a riqueza monetária, o entesouramento, e assim se tornou possível uma grande acúmulo de mercadorias expressas na mercadoria dinheiro (que representa valor por sua vez presumivelmente expresso em horas de tempo-valor, o trabalho abstrato), sem prejuízo da riqueza em mercadorias outras, como propriedade.

Quando se propõe a superação da forma valor (dinheiro e mercadorias), e quando já não mais seria possível a acumulação em dinheiro, e acumulação via domínio territorial e de meios de produção nas mãos de quem quer que seja já não seria tão fácil. O que propomos é uma coletividade com ordenamento jurídico horizontalizado, sem a ideia de poder vertical, que coíba a tirania. Sob tal ordem a criação de oligarquias de dominação confrontaria com o consenso geral de socialização da riqueza, que voltaria a ser meramente material e compartilhada, e assim seria mais fácil de ser eliminada, quando se tentasse a sua constituição.

Isto não quer dizer que a vida social estaria imune a problemas outros ainda presentes na
segunda natureza humana, com todas as suas mazelas.

Acredito que assim teríamos resolvido os problemas sociais básicos, e ecológicos também.

Um abração e grato pela constante leitura. Dalton Rosado.

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