ruy castro
RAZÃO vs. SENSIBILIDADE
Há dias, o garoto Luiz Felipe Salinas Almeida, 20 anos, tocava seu violoncelo numa rua de Santos quando ouviu algo se chocando contra a madeira do instrumento. Sem parar de tocar, examinou-o e viu a baba escorrendo. Alguém o alvejara com um ovo.
Diante da gratuita brutalidade, Luiz Felipe teve vontade de chorar. Mas se segurou e continuou tocando. Os transeuntes que o ouviam olharam em torno tentando identificar quem fizera aquilo. Não conseguiram –o ovo poderia ter vindo de alguma janela.
Outros perceberam a agressão e aproximaram-se, solidários. Isso só ampliou a humilhação de Luiz Felipe. Como ele disse depois, não queria ser objeto de piedade.
Não era a primeira agressão que sofria. Luiz Felipe toca nas ruas para viver e para pagar a pensão alimentícia de seu filho Valentim, de um ano.
Seu palco são as cidades do interior de São Paulo e Minas Gerais. Em algumas, o comércio ao alcance de sua música já chamou a polícia para tirá-lo dali e apreender seu instrumento.
Luiz Felipe pode não ser um virtuose como o catalão Pablo Casals e o russo Mstislav Rostropovich, duas lendas do violoncelo, ou o sino-americano Yo-Yo Ma, um prodígio contemporâneo.
Mas o violoncelo não é um instrumento agressivo. Seu território é o clássico e, sempre que emprestado à música popular, deu a esta uma sobriedade e classe que ela poderia ter incorporado de vez –vide o americano Kronos Quartet tocando Thelonious Monk e o nosso trio Paula e Jaques Morelenbaum e Ryuichi Sakamoto tocando Jobim.
Numa época de música em decibéis intoleráveis para o ouvido humano, é impossível a um menino armado com um arco e quatro cordas, como Luiz Felipe, ferir a sensibilidade de alguém.
Resta ver até quando nossa sensibilidade resistirá à selvageria oficial, emanada dos atuais ocupantes do poder. Nunca o Brasil foi reduzido a tal rudeza e sordidez.
A pessoa que atirou o ovo personifica esse Brasil. (por Ruy Castro)
Este filme quase desconhecido –O violinista, de 1994, dirigido por
Charles Van Damme e tendo Richard Berry no papel principal– é
um dos meus maiores cults pessoais, com um final antológico.
Mostra violinista em crise criativa que se reencontra com
sua arte tocando em estações do metrô de Paris. (CL)
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