Desde o nascedouro, a palavra democracia corresponde a uma tentativa enganosa de horizontalização do poder social e político.
Já nos bancos escolares, aprendemos erroneamente que, na Grécia antiga, democracia significava governo do povo. Na verdade os demos eram somente os cidadãos atenienses que podiam participar das decisões políticas daquela cidade-estado.
Ficavam excluídos os escravos e outros membros de castas sociais menos classificadas na hierarquia grega, vez que não tinham direito a tal participação.
Passados mais de três milênios, o sistema de participação popular ganhou aperfeiçoamentos que continuam a dar suporte à verticalização do exercício do poder político consentâneo com formas escravistas de organizações sociais, nuns arremedos de representações populares que apenas legitimam as opressões neles contidas.
A democracia moderna, como disse Anselm Jappe, é uma arapuca.
A divisão política bicameral do parlamento, pretensamente representativa da vontade popular, existe desde as monarquias constitucionais, há mais dois séculos, pretendendo assegurar que haja uma instância moderadora das funções executivas de governo; mas o que se constata é sempre a convergência num mesmo sentido de manutenção de uma ordem de relação social escravista na sua essência.
Atenas: democrática pero no mucho, pois a igualdade de direitos não era para todos |
Os defensores da democracia liberal batem insistentemente na tecla de que a alternativa a seus pressupostos políticos seriam as ditaduras absolutistas, intolerantes à divisão do poder sob qualquer forma; mas isto não significa que devamos aceitar o ruim por medo do péssimo.
A verdade é que sempre se martelou a ideia de que não haveria forma possível de participação popular eficaz, daí a conveniência de aceitarmos a democracia burguesa como uma bem intencionada tentativa em tal sentido, ou, pelo menos, como um mal menor.
Ainda no final do século 18, bem como nos momentos que antecederam a 1ª Guerra Mundial, a Inglaterra e seu império colonial já contava com a Câmara dos Lordes, que corresponde ao nosso Senado Federal, um modelo de representação elitista que incluía a nata da aristocracia, os bispos, e os juízes do alto escalão.
A Câmara dos Comuns, correspondente à nossa Câmara Federal, era formada por representantes eleitos sob o mesmo figurino político eleitoral (sem que àquela época fosse facultado o voto feminino) dominado pelo poder econômico, com uma legislação eleitoral que permitia a escolha dentro daquilo que já fora previamente escolhido.
Mais de um século depois, vige aqui no Brasil (e mundo afora) um modelo de representação parlamentar elitista. Temos o centrão, um grupo parlamentar de mais de 300 deputados que representa a unidade de interesses econômicos de setores do capital cujo denominador comum é a manutenção das regras de relações sociais sob a égide de quem os elegeu: o capital.
Como os políticos são majoritariamente paus mandados do dito cujo (raramente os grandes capitalistas se aventuram a ingressar no parlamento, só o fazendo às vezes por vaidade pessoal, mas o encanto logo se desfaz quando percebem que mandam mais como detentores do seu capital e do que como participantes dessa esfera esvaziada de poder que gravita em torno do poder econômico), o processo eleitoral é marcado por uma falsa soberania de vontade popular na escolha dos seus representantes.
Estes são eleitos pelo voto de cabresto no Brasil profundo e, em última análise, pelo poder econômico em toda parte. Não é de se admirar, portanto, que o tal centrão seja fisiológico e negocie apoio na base do toma lá, dá cá, notadamente quando os governos (todos) se fragilizam em função do desgaste comum a um exercício de poder executivo incapaz de prover as demandas sociais a contento.
Vide o caso de Daniel Silveira, um troglodita que se diz democrata mas aplaude assassinatos como o da vereadora Marielle Franco (odiou-a a a ponto de quebrar a placa da rua com o nome dela!) e seu motorista, atuando como defensor das ditaduras absolutistas e partidário da volta daquele terrorismo de Estado que atingiu o auge nos anos Médici .
Mesmo sendo membro do parlamento, Silveira prega o fechamento da casa legislativa a que pertence. E o faz com motivação oportunista, ávido por mais poder, manipulando a flagrante insatisfação popular ao tentar fazer os ingênuos crerem que o oposto ao apodrecido sistema seja uma nova ditadura.
Não! O que está posto não se confunde com uma democracia (se quisermos dar à palavra um sentido de soberania popular de vontade) nem a ditadura é mais democrática do que a democracia burguesa, criadora permanentemente dos centrões da vida.
Só teremos uma participação popular na qual cada um de nós seja responsável pelas próprias venturas e desventuras, sem transferência de responsabilidades para algum representante político, se transformarmos o nosso modo de produção social, pois é ele que define o caráter das sociedades.
Assim como os chás da caridade de damas da alta sociedade alivia--lhes a consciência pesada por uma culpa social que intimamente as fustiga, a defesa da democracia burguesa costuma ser uma justificativa para algo que se sabe de antemão ineficaz e o falso antídoto à ditadura, como se só existissem apenas os dois modelos.
Os trabalhadores de baixa renda vivem num mundo que lhes é opressor e, evidentemente, sentem a opressão e o sofrimento a que estão submetidos; mas não acreditam num mundo diferente, ou acham que tudo pode melhorar dentro da ordem existente, que lhes é martelada como imutável.
Aceitam, equivocadamente, que lhes resta apenas a tentativa de furarem sozinhos o bloqueio à sua ascensão social, seguindo o exemplo de um outro raro felizardo em meio às legiões de perdedores.
Ao invés de negarem o móvel da opressão própria ao capital e seus donos e representantes, reafirmam-na cotidianamente, como se fosse possível a causa do mal servir como cura do mal.
Os proletários mantêm, nas suas condições de trabalhadores sempre elogiados pelo capital e pela ordem política e social que lhe é inerente, a satisfação de ainda terem o direito de um emprego (daí a busca frenética pelas vagas cada vez mais escassos), sem perceberem que somente a própria superação de suas condições de trabalhadores assalariados pelo capital poderá promover o início da justiça social necessária.
Assim, os que quererem a preservação dos seus privilégios, ainda que estejam cada vez mais ameaçados pela debacle capitalista causada pela contradição dos seus próprios fundamentos funcionais, querem a continuidade da democracia burguesa; os que deveriam rejeitá-la (os trabalhadores assalariados de baixa renda, a grande maioria) não sabem a forma de fazê-lo.
Nesta simbiose entre a esperteza dos que sabem gerir seus interesses e a ignorância sobre a condução revolucionária dos que gostariam de superar os seus sofrimento mas não sabem fazê-lo, permanece a falsa dicotomia entre ditadura totalitária e democracia burguesa, como se a força das armas e a solenidade do poder vertical concentrado fosse a antítese da busca de humanização do capital via processo democrático burguês republicano.
A ditadura burguesa e a democracia burguesa são espécies de um mesmo gênero: a mediação social capitalista.
Não! A antítese ao capital é a sua extinção como modo de relação social, e não a sua impossível humanização. (por Dalton Rosado)
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