Quando o CPF saiu de casa, ainda era madrugada só o som do velho rádio de pilha rompia a escuridão. O CPF fechou a porta de seu barraco, ato meio inútil, pois ali não havia nada a ser roubado.
Tendo no estômago apenas um copo de café com leite e um pão dormido, o CPF se encaminhou para o ponto de ônibus.
Mesmo pelo horário, o veículo estava lotado e o CPF precisou ficar espremido entre bolsas e rostos ainda dormentes.
Uma hora de viagem. O CPF desceu numa rua do centro. Ainda havia pouco movimento. Foi até a padaria recém aberta e pegou seu trambolho com salgadinhos e água.
Empurrando ladeira acima, sentia as pernas enfraquecerem e o suor despencar em suas costas, encharcando a calça surrada.
Chegou ao ponto de venda, colocou seu banquinho, ligou de novo o velho rádio de pilha e começou a observar a lenta marcha do dia.
Eram dias difíceis para o CPF, pois, desde o início da pandemia, o movimento caiu e sua renda também.
No começo, conseguiu o tal auxílio do governo depois de pedir ajuda a um vizinho para inscrever-se. Em troca, teve de dar cem reais do auxílio.
Pôde ficar em casa uma semana, mas o calor do barraco o jogou na rua. Agora, no entanto, sem auxílio nem nada, era o estômago que o jogava na rua.
A meninada do colégio não aparece mais para comprar, nem os engravatados do prédio em frente. O CPF não entende bem a tal pandemia. Apenas sabe que precisa usar máscara.
No começo ficou muito preocupado, medo da morte. Mas, depois, viu o presidente falando que não tinha perigo e o CPF ficou mais tranquilo.
Chegou mesmo a repetir a fala presidencial com um colega jornaleiro: "A economia não pode parar, João. A fome mata mais que esse troço aí".
Um dia aconteceu um prodígio: o presidente apareceu em pessoa na rua!
O CPF não acreditou. Encantado, igual uma criança no Natal, estendeu a mão para o presidente e gritou "Deus te abençoe!".
O presidente deu-lhe dois tapinhas nas costas e seguiu em frente.
"Que homem educado!", pensou o CPF enquanto via a muvuca seguindo, sumindo na esquina.
O dia passou e pouco foi vendido. Logo, porém, lá pelas cinco da tarde, o CPF começou a sentir-se mal. Uma dor de cabeça chegou nele. Tonturas e um cansaço fora do normal.
Ao vê-lo, o jornaleiro correu pegar sua máscara e gritou de longe. "Ó, você deve de tá com covid!".
O CPF ficou transtornado. Como iria levar embora seu carrinho? Mais tempo de preocupação não teve, pois desmaiou.
Nunca mais o CPF acordou. Dali foi pra UPA. Na UPA, já foi intubado. Dois dias depois, os médicos resolveram deixa-lo morrer; não havia o que ser feito e era preciso dar lugar para quem tinha mais chances.
Seu número foi riscado da listagem hospitalar e o corpo encaminhado para o cemitério. Nenhum familiar ou amigo apareceu.
Em algum lugar do Planalto Central, um homem olhava pela janela e disse para si mesmo: "CPF cancelado". (um conto de David Emanuel Coelho)
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