O presidente Jair Bolsonaro pode ter lá suas razões de governo para julgar frescura e mimimi a prostração dos brasileiros pelos mais de 260 mil mortos pela covid-19. Mas, em assim agindo e em assim se manifestando, contraria leis multimilenares, que existem desde que o homem é homem.
A mais representada das tragédias gregas em todos os tempos é a sempre atual Antígona, de Sófocles, encenada pela primeira vez em 441 a.C. Trata do conflito entre razões de governo e direitos de família.
Creonte, o então todo-poderoso de Tebas, decretou que Polinices, filho de Édipo, não poderia ser sepultado na cidade, por considerá-lo traidor. Seu cadáver teria de ser exposto às intempéries e à ação dos cães e das aves carniceiras.
Antígona, irmã de Polinices, se rebelou contra essa determinação desumana e contrária aos deuses. Em segredo, recobriu o cadáver do irmão com a veste dos mortos, fez as abluções devidas e o sepultou de acordo com os rituais sagrados.
“As tuas determinações não têm força” – justificou-se depois diante de Creonte – “para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis.”
Por sua insubordinação foi condenada à morte. Mas as consequências vieram a galope. Creonte e sua família foram castigados pelos deuses. “Cedo ou tarde, o mal parecerá um bem àquele que os deuses resolveram desgraçar” – canta o coro da peça.
O direito ao luto e a reverência aos mortos são registrados pela literatura clássica e pelos que vieram depois. Na Ilíada, de Homero, Agamenon, o comandante da coligação grega, se submete a sacrificar sua filha Ifigênia para obter ventos favoráveis para a frota paralisada nas areias de Aulis.
Esta é mais uma situação em que razões de governo se sobrepujaram aos direitos de família. Os castigos se sucederam. De volta vitorioso a Micenas e em vingança pelo assassinato de Ifigênia, Agamenon foi decapitado a machado por sua mulher Clitemnestra. Anos depois, o filho de ambos, Orestes, vinga a morte do pai e elimina a mãe.
Nas cenas finais da Ilíada, o rei de Troia, Príamo, arrisca sua vida, transpõe o acampamento dos gregos, ajoelha-se diante de Aquiles, que matou seu filho Heitor em luta diante das muralhas de Troia, e implora a devolução do cadáver para que possa ser pranteado e, depois, cremado.
O animal Aquiles – na expressão de Christa Wolf, em sua obra Cassandra – se comove com a coragem do rei inimigo, devolve o cadáver de Heitor e determina trégua na guerra, até que se completem os funerais.
Quem viveu tempos não muito distantes deve lembrar-se. A morte de alguém envolvia a família, a rua, o bairro, a aldeia inteira. As lojas baixavam as portas em sinal de luto, os sinos dobravam a finados, as bandeiras eram hasteadas a meio pau. Nas solenidades e antes de eventos esportivos, guarda-se um minuto de silêncio em memória do falecido.
Quando afirma que a comoção provocada pelas mortes em decorrência da covid-19 não passa de frescura e mimimi, Bolsonaro renega essa herança cultural e incorre em impiedade e desrespeito à humanidade. Como visto pela literatura, coisas assim têm consequências.
TOQUE DO EDITOR – uma pequena preciosidade, este artigo foi buscar na Grécia antiga, berço da nossa civilização, o parâmetro de contraste para evidenciar quão longe o Bolsonaro se encontra de tudo que nos enobrece e dignifica enquanto seres humanos. Ele é da estirpe dos Creontes, impiedoso até a medula.
O Celso Ming (foto ao lado), de quem fui colega de redação no extinto Jornal da Tarde, escreve sobre economia há mais de quatro décadas, sendo um jornalista discreto e digno, que quase sempre aborda apenas os assuntos de sua editoria, salvo quando um episódio de incontinência verbal explícita lhe provoca a indignação dos justos. (por Celso Lungaretti)
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