terça-feira, 16 de março de 2021

A METAMORFOSE DO VÍRUS PRESIDENTE

D
epois de uma noite de sonhos agônicos, o vírus acordou metamorfoseado num presidente asqueroso. 

Abriu o que agora eram seus olhos e começou a ter uma infinidade de sensações antes inimagináveis para ele. 

Estendendo-se do seu corpo – ele agora tinha um corpo!  estavam quatro longos membros, dois próximos à cabeça e dois na ponta posterior de seu corpo. 

Balançava os membros superiores e via uma coisa pegajosa e enrugada balançar. Essa coisa também se espalhava por todo o seu corpo: era nojenta e flácida. 

Sim, o vírus descobria agora ter noção do que é nojento. Tão milagrosa quanto sua transformação naquilo era o fato de que tinha compreensão total de tudo e, logo ao recuperar-se de seu susto, adquiriu algo jamais experimentado por ele, aquilo chamado por alguns de autoconsciência

Não apenas autoconsciência, mas também memória. Lembrava de estar há pouco navegando por uma corrente sanguínea, fugindo de predadores ferozes que tentavam devora-lo. Lembrava-se da morte dolorosa de seus semelhantes, dizimados por aqueles predadores. Ao lembrar disso, algo rolou de seus olhos: era uma lágrima. 

De repente, outras memória foram chegando à sua mente: não eram suas, mas daquele sujeito no qual agora tinha se transformado. O vírus ficou assustado. Eram memórias horríveis, caóticas, odiosas e sem compaixão. 
Mas, no meio daquilo, ele viu um pouco de bondade. Um pouco? Não! Bastante bondade! O vírus até abriu um sorriso. No fundo, o tal ser queria o bem da sua gente, ele queria o bem dos vírus. Descobriu que ele lutava pela perpetuação dos vírus. 

Claro, o motivo não era nobre. O ser queria o bem dos vírus por desejar a morte dos seus semelhantes. Mas, pro inferno os motivos dele!, pensou o vírus. O importante é lutar pelos seus!

O vírus levantou da cama e gritou bem alto: É preciso continuar defendendo a minha espécie! 

E assim foi: o vírus inteirou-se de todas as medidas que estavam sendo tomadas para conter o avanço do que era chamado – xenofobicamente!, ele pensava – de doença e decidiu lutar contra elas. 

Foi à TV para atacar o isolamento. Incentivou o não uso de máscaras. Fez aglomerações. A cada aumento no número de casos, ele sentia-se mais feliz e confiante. Mais determinado na sua cruzada em prol da proliferação dos seus semelhantes. 

Não era fácil estar naquele corpo repulsivo, mas, sendo este o preço a ser pago, ele se dispôs a suportá-lo. 

Ao longo dessa campanha, descobriu que muitos sujeitos não se importavam com a própria espécie e apoiavam com entusiasmo suas ações. Viu como era recebido efusivamente por milhares deles  cada vez que o número de mortes crescia. Ouvia o frenesi da massa: Viva a morte, abaixo a vida!, É pela economia!

O vírus não entendia muito bem o que era a
economia, pois o ser no qual se transformara não entendia nada daquilo (na verdade, só entendia de matar). 

O melhor que pôde entender foi que a economia seria para aqueles seres o que é a vacina para o vírus: uma forma escravizadora, que parasita vírus fracos para ajudar a matar seus semelhantes. Ficou chocado com isso e desistiu definitivamente de entender aqueles seres. 

Depois de muito tempo, já passava de um milhão o total de mortos entre os seres. O vírus continuava com seu combate, pois era preciso manter o máximo possível de seus companheiros vivos. 

Foi aí, que para sua tristeza, percebeu uma coisa estarrecedora: menos seres morriam e a doença diminuía. Preocupado, começou a procurar a explicação do que acontecia. 

Descobriu que, depois de o vírus se reproduzir a um nível altíssimo e a tantos matar, ele se tornava inofensivo, pois os seres desenvolviam imunidade. 

O vírus não podia aceitar aquela barbaridade. Seus semelhantes iam morrer justamente porque ele os quis salvar. Mas, mais tempo não teve para refletir, pois numa manhã acordou metamorfoseado de volta em vírus. 

No entanto, por pouco tempo, encontrou o ser no qual havia se transformado e não pôde deixar de lhe perguntar o que mais o atormentava. 

Foi você? Você me usou para matar meus semelhantes e condenar a minha espécie?

Não, respondeu o presidente. Te usei para matar os MEUS semelhantes e ajudar a MINHA espécie.
Não entendi
.

Minha espécie é o poder e só vive da morte. Você foi útil, vírus. Adeus.

Antes de o vírus poder meditar sobre aquelas palavras, ele foi devorado por um anticorpo, deixando apenas um rastro finíssimo de material orgânico. (por David Emanuel Coelho)

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