sexta-feira, 20 de novembro de 2020

TRIBUTO A UM GIGANTE DA LUTA PARA A AFIRMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA NEGRA

 "Tem a postura da estátua da Liberdade
e a altura do Empire State.
Salve, Cassius Marcellus Clay!
Soul brother, soul boxeur, soul man"
(Jorge Ben)
Eu tinha 13 anos e, talvez por ser de família kardecista, jamais vira sentido nenhum no racismo. Considerava todos os seres humanos iguais, dava-me bem com os colegas negros da escola e da turminha da rua, mas nunca me preocupara muito com os preconceitos; apenas discordava deles.

Aí, em fevereiro do ano maldito de 1964, a luta tipo Davi contra Golias, entre um jovem e atrevido pugilista negro e um brutamontes ex-presidiário me atraiu a atenção. Fiquei chocado ao saber que racistas dos EUA torciam para que o também negro Sonny Liston calasse a boca de Cassius Clay para sempre. 

Desejei sua vitória, mas acreditando que o campeão demolidor o destruiria. Para minha surpresa, ele fez valer a inteligência e a arte contra a força bruta, conquistando o título dos pesos-pesados e confirmando-o na revanche. Fiquei tão eufórico que passei a acompanhar as notícias sobre ele e a torcer por suas vitórias nos ringues e na vida.

Daí estar homenageando-o neste Dia da Consciência Negra. Pois, se adiante vim a admirar mais negros da política, dos esportes e das artes, ele foi o primeiro e tão extraordinário na sua época quanto Lewis Hamilton –outro cujas humilhações que impõe aos racistas me lavam a alma– está sendo agora. (por Celso Lungaretti)
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SUA GRANDE LUTA FOI CONTRA O
 SISTEMA. E ELE VENCEU POR NOCAUTE!
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Cassius Clay, que mudou seu nome para Muhammad Ali ao se converter ao islamismo em 6 de março de 1964, duas semanas após ter conquistado pela primeira vez o título mundial, simplesmente revolucionou o boxe peso-pesado, antes dominado por grandalhões fortes mas lentos. 

Bem mais ágil do que os adversários, baseava sua defesa antes na rapidez com que se movimentava no ringue do que na guarda. Chegava a usar as mãos apenas para golpear, batendo e saindo sem ser atingido. E levava os racistas ao paroxismo da indignação, ao proclamar-se forte, ágil e bonito.

Era um negro orgulhoso de ser negro, algo inimaginável naqueles tempos em que os negros conheciam o seu lugar  e aceitavam passivamente sentar-se em locais separados nos transportes, nos restaurantes, nos cinemas, etc.

Falastrão, ele chegava também a ofender seus adversários, como Sonny Liston, o primeiro homem mau do boxe que Ali humilhou nas declarações prévias e depois detonou no ringue, por nocaute técnico no 7º assalto e por nocaute-relâmpago aos 2:12 da revanche.

Num excelente documentário de Dimitri Logothetis, Champions forever (1989), os aposentados Ali, George Foreman, Joe Frazier, Ken Norton e Larry Holmes trocaram ideias sobre os duelos de gigantes que travaram. Os outros quatro mostraram muito carinho por Ali e reconheceram que suas declarações bombásticas para promover as lutas multiplicaram várias vezes o valor das bolsas que recebiam, daí não lhe terem guardado ressentimentos.
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"VIETCONG NENHUM ME CHAMA DE NIGGER"
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Suas esquivas colocavam o rival em ridículo
Ali perdeu o cinturão, muita grana e alguns dos melhores anos da carreira de um pugilista por recusar-se a coonestar a agressão estadunidense ao povo vietnamita –atitude que justificou com argumentos religiosos, mas cujo motivo maior ficou evidenciado na frase Vietcong nenhum me chama de  nigger  [pejorativo muito usado pelos racistas dos EUA].

Preconceituosos e/ou direitistas de lá lhe atribuíram covardia, mas o Exército jamais se arriscaria a deixá-lo ao alcance do fogo inimigo; caso fosse atingido, o efeito moral seria devastador. Os militares, na verdade, lhe garantiram que apenas serviria como relações-públicas do esforço guerreiro, seguindo as pegadas do ator Bob Hope.

Ali preferiu ficar sem o título, sem os muitos milhões de dólares que teria ganhado, sem o direito de exercer sua profissão –em razão da inacreditável pena de suspensão por tempo indeterminado que recebeu da máfia do pugilismo. O que, afinal, tinha a ver o título de campeão do mundo com a recusa em envergar a farda dos EUA?

Para sobreviver, chegou a dar palestras em faculdades, encantando os estudantes com sua grandeza moral e sua inteligência aguda. 
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Documentário do History Chanell, já no fim de vida de Ali
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Certa vez lhe pediram que, de bate-pronto, compusesse um poema. Não negou fogo. Fez um de apenas duas palavras: Eu. Nós. 

O minimalismo extremo –alguém imaginaria que ele fosse capaz de criar algo assim?
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UM DAVI VETERANO CONTRA UM JOVEM GOLIAS
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Depois de perder seu título e passar três anos e meio fora dos ringues, Ali voltou e, já na terceira luta, tentou reconquistar o cetro.

Pareceu não ter-se dado conta de que a vantagem sobre os adversários diminuíra (haviam assimilado suas inovações) e até de que estava despreparado para a maratona de 15 assaltos.

Vinha melhor, mas foi derrubado por Frazier no último round. A vantagem por pontos que acumulara, aparentemente, ainda lhe garantiria a vitória, mas os jurados assim não entenderam.

Depois, sem título em disputa, travaram nova luta equilibradíssima e a vitória por pontos –também muito contestada– foi conferida a Ali.

Ele recuperou o cinturão ao vencer Foreman na maior luta de boxe de todos os tempos e de todas as categorias [imortalizada nos excelentes livro de Norman Mailer (A Luta, 1975) e documentário de Leon Gast (Quando éramos reis, 1996)].

Já com 32 anos, teve de enfrentar um campeão jovem e poderosíssimo, que acabara de simplesmente massacrar Joe Frazier, mandando-o à lona seis vezes em dois rounds.

A apreensão generalizada era de que Ali, além de derrotado, saísse morto do ringue, pois seu amor-próprio o impediria de desistir, fosse qual fosse a intensidade do castigo recebido.

Mas, ele tirou coelho da cartola. Todos lembram de sua técnica refinadíssima, mas Ali era muito mais do que isto. Tinha dons de grande estrategista, como se combinasse os papéis de pugilista e de técnico.
A direita erguida deixara de golpear Foreman
Foi assim que ele venceu o invencível  Big George. Boxeando francamente contra ele no primeiro assalto, percebeu que jamais conseguiria a vitória lutando de igual para igual. A força descomunal do lutador mais jovem prevaleceria.

Então, adotou a postura que qualquer pugilista comum consideraria suicida diante da enorme potência dos golpes de Foreman: deixou-se ficar encostado nas cordas, recebendo o bombardeio e aparando-o com sua guarda.

Alguns obuses atingiam o alvo de raspão, outros se chocavam com os braços de Ali. Nenhum o abalou suficientemente. E Foreman, acostumado a nocautes rápidos, foi se cansando.

No quinto assalto, o Ali aparentemente apático, que só se defendia, mostrou que era, isto sim, um tigre se preparando para dar o bote: com um contra-ataque fulminante, quase nocauteou Foreman.

Depois de dois rounds letárgicos, foi o que acabou acontecendo no oitavo assalto. Ali novamente surpreendeu Foreman e, com uma sequência de golpes cuja rapidez era inimaginável àquela altura de uma luta tão exaustiva, metralhou a cabeça do oponente até fazer aquele gigante desabar em câmara lenta no ringue.

Ali x Foreman: eis a luta do século, na íntegra.

A coragem que deu a vitória a Ali nessa luta foi a mesma que o manteve no ringue até o fim de uma luta na qual teve seu maxilar fraturado no 2º round por Ken Norton.

O castigo que recebeu de Foreman foi tão terrível que, depois da vitória consumada, ele teve um breve desmaio durante as comemorações. Até então, entretanto, a adrenalina o mantivera em pé.
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CAVALHEIRISMO RARO NUM BOXEADOR
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Joe Frazier sofreu duro castigo
Na sequência, colocou o título em jogo no tira-teima contra Frazier.

Tinha todos os motivos para impor derrota contundente ao rival e, assim, não deixar dúvidas de sua superioridade, depois das decisões polêmicas nas duas lutas anteriores.

No 14º assalto, esteve com Frazier à sua mercê, grogue, praticamente nocauteado em pé. Mas, ao invés de desfechar o golpe de misericórdia, pediu insistentemente ao juiz que interrompesse a luta.

Como não foi atendido, evitou bater pesado até o gongo soar. [Atitude semelhante à que teve ao nocautear Foreman: armou um soco mas, ao perceber que o cambaleante adversário cairia de qualquer jeito, não o desferiu, mostrando um autocontrole raríssimo em pugilistas.]

Os segundos decidiram que Frazier não tinha condições para disputar o 15º e último round. Vitória de Ali por abandono.

A caminho do vestiário, ele cruzou com o filho de Frazier e prestou tributo ao grande adversário: Seu pai foi o homem mais valente que eu já enfrentei.

Estava certo. Na foto publicada pelos jornais do dia seguinte, o rosto do pobre Joe estava assustador, de tão marcado pelos golpes de Ali.

Ótimo documentário sobre o boxe e seu maior campeão

Deveria ter parado então, no auge da glória e sem sequelas. Insistiu em permanecer nos ringues e acabou sofrendo castigos desnecessários que, provavelmente, lhe causaram ou agravaram o mal de parkinson. Escolhido como O desportista do século em 1999 pela influente revista The Sport Ilustrated, Ali morreu em junho de 2016, aos 74 anos, após lutar durante os últimos 32 contra a moléstia.

A melhor frase sobre ele foi a de Foreman, no documentário de Logothetis. Indagado se Ali tinha sido o maior peso-pesado de todos os tempos, Foreman esquivou-se de compará-lo com o igualmente superlativo Joe Louis. E ponderou:
"Não sei quem foi o maior de todos, mas, certamente, Ali foi o melhor cidadão que já lutou boxe peso-pesado".

Foi comovente o tributo de Jorge Ben a Muhammad Ali

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