A colônia, conforme foi charmosamente retratada no filme italiano La Cecília, de 1975...
Em 1968 o anarquismo ressurgiu triunfalmente na cena política, com suas bandeiras negras tremulando nas barricadas parisienses. Foi quando caiu para as novas gerações de revolucionários a ficha de que a greve geral de 1917 havia sido um episódio de extrema importância nas lutas sociais brasileiras, mas permanecera meio século subdimensionado ou mesmo omitido pela historiografia comunista, que, mesquinhamente, evitava levar água para o moinho da concorrência.
O impacto foi ainda maior para mim por ter tomado conhecimento de que o movimento se iniciara no Cotonifício Rodolfo Crespi, no qual meu pai trabalhara de 1930 até a desativação e desmembramento em 1963, além de permanecer como empregado, até 1976, de firmas menores que lá se estabeleceram.
Eu mesmo fiquei conhecendo uma delas, na qual ia fazer um bico mensalmente.
Quando o grande cotonifício ainda existia, eu cheguei a visitá-lo com meu pai. Para minha surpresa, constatei depois que o congênere italiano mostrado no filme Os Companheiros, ambientado no final do século retrasado, era quase idêntico. Ou seja, a fábrica daqui parecia uma cópia da europeia de seis décadas antes!
Percebendo o quanto a greve de 1917 havia sido minimizada pelos historiadores camaradas (o duplo sentido é intencional!), acabei me interessando também pelo outro grande marco da atuação anarquista no Brasil, a Colônia Cecília, e escrevendo sobre ambas. (CL)
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O filme La Cecilia (d. Jean-Louis Comolli, 1975) resgata um episódio histórico pouco conhecido entre nós, embora aqui transcorrido: a implantação de uma colônia rural no Paraná, por parte de anarquistas italianos.
Foi a concretização de um+ sonho há muito acalentado por Giovanni Rossi, conforme ressaltou a historiadora Izabelle Felici:
"A personagem do fundador da Cecília é indissociável da história da colônia. Toda a sua atividade política gira em torno de um projeto de vida comunitária.
Desde a sua adesão à Internacional, em 1873, aos 18 anos de idade, Giovanni Rossi propôs um projeto de vida comunitária na Polinésia. Os numerosos artigos que ele apresentou na imprensa italiana, anarquista e socialista, os apelos que ele lançou às associações, federações, partidos, suscetíveis, a seus olhos, de ajudá-lo, tinham todos por objetivo expor seu projeto de comunidade ou, após 1890, apoiar a experiência em curso no Brasil.
Com o mesmo objetivo de propaganda, Rossi funda, além disso, seu próprio jornal, Lo Sperimentale, em 1886. Ele desenvolve igualmente seu projeto de comunidade num romance utópico, Un Comune Socialista, no qual a personagem feminina tem por nome Cecília".
O experimento durou cerca de quatro anos, entre 1890 e 1893. Houve muito entusiasmo no início, mas depois foram aflorando os problemas que acabariam levando à extinção da colônia. Eis alguns:
— a contribuição desigual de citadinos e camponeses, pois a produtividade dos primeiros era inferior. Deveriam receber a mesma fração dos frutos do trabalho, conforme os ideais igualitários? Isto não significaria uma espécie de proletarização dos que produziam mais por estarem acostumados a lidar com a terra? De outra parte, se os lavradores fossem melhor aquinhoados do que os outros, não estaria sendo reproduzida a escala de valores da sociedade burguesa? Inexistia uma solução que contentasse a todos;
— a contribuição desigual de citadinos e camponeses, pois a produtividade dos primeiros era inferior. Deveriam receber a mesma fração dos frutos do trabalho, conforme os ideais igualitários? Isto não significaria uma espécie de proletarização dos que produziam mais por estarem acostumados a lidar com a terra? De outra parte, se os lavradores fossem melhor aquinhoados do que os outros, não estaria sendo reproduzida a escala de valores da sociedade burguesa? Inexistia uma solução que contentasse a todos;
— a dificuldade de lidarem, no dia a dia, com o conceito do amor livre, uma novidade que incomodava principalmente as colonas de origem camponesa;
— a absoluta falta de seriedade do Estado brasileiro, que já era patético décadas antes de De Gaulle o haver constatado. O imperador Pedro II, atendendo a pedido do músico Carlos Gomes, doou as terras para a instalação da Cecília, mas, proclamada a República, o seu ato foi sumariamente revogado e os colonos tiveram de pagar pelas terras com parte de sua colheita e trabalhando sem remuneração em obras do governo;
— a hostilidade dos moradores da região (por sentirem-se prejudicados pela concorrência) e de uma vizinha comunidade polonesa, católica e conservadora;
— as fases de escassez e de fome, com a consequente ocorrência de doenças decorrentes da desnutrição (problemas passageiros, que, contudo, reforçaram a tendência ao egoísmo por parte dos menos convictos dos ideais anarquistas, gerando desgastantes divisões); e
— a tentativa do governo de recrutar os colonos (italianos!!!) para combaterem a Revolução Federalista, o que, inclusive, contrariava seus ideais, pois simpatizavam com os revoltosos.
A Cecília chegou a ter 250 moradores e não deixaram de ocorrer defecções em massa, contrabalançadas pela chegada de novas levas de voluntários, atraídos pela divulgação nos círculos libertários europeus.
Alguns desistentes migraram para Curitiba, onde fundaram a Sociedade Giuseppe Garibaldi.
O filme conta esta rica história de forma dramatizada e com evidente simpatia pela causa.
Vale destacar que o elenco, cuja única cara familiar ao público brasileiro é a do ótimo Vittorio Mezzogiorno (No coração da montanha, O processo do desejo, Três irmãos), deu perfeita conta do recado.
Particularmente, eu preferiria uma abordagem menos convencional –como, p. ex., a que o cineasta suíço Alain Tanner deu aos ideais de 1968 no seu extraordinário Jonas, que terá 25 anos no ano 2000.
O filme conta esta rica história de forma dramatizada e com evidente simpatia pela causa.
Vale destacar que o elenco, cuja única cara familiar ao público brasileiro é a do ótimo Vittorio Mezzogiorno (No coração da montanha, O processo do desejo, Três irmãos), deu perfeita conta do recado.
Particularmente, eu preferiria uma abordagem menos convencional –como, p. ex., a que o cineasta suíço Alain Tanner deu aos ideais de 1968 no seu extraordinário Jonas, que terá 25 anos no ano 2000.
Mas, sendo tão raras as produções que enfocam episódios históricos ligados ao anarquismo, temos mais é de incentivar filmes como este, recomendando a todos que o prestigiem, discutam e divulguem...
Chega a ser chocante que, em meio a tanta tralha produzida no Brasil, ninguém haja realizado um filme sobre a Colônia Cecília, nem sobre a importantíssima greve geral de 1917.
Antes mesmo das trevas que desabaram sobre nós em 2019, já existiam assuntos malditos para nosso cinema, como os relativos a episódios libertários, às lutas por justiça social e às possibilidades eróticas inaceitáveis para as pessoas reprimidas.
E, claro, nossos últimos 22 meses foram de retrocesso desembestado, rumo a um passado ignaro e bestial. (CL)
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