Marcado para 2 a 12 de setembro próximos, o 77º Festival de Veneza apresentará em sua mostra não-competitiva (ou seja, sem concorrer ao Leão de Ouro e demais prêmios da seleção oficial) o documentário brasileiro Narciso em Férias, sobre a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil duas semanas após a assinatura do Ato Institucional nº 5 e os 54 dias em que permaneceram encarcerados na PE da Vila Militar (RJ).
Escrito e dirigido por Renato Terra e Ricardo Kalil, o filme é focado em Caetano, hoje com 77 anos. Mostra como ele e Gil foram mantidos em solitárias durante duas semanas e depois transferidos para celas.
Sobre a inferno da solitária, ele conta:
"Eu tinha de comer ali no chão mesmo. Isso durou uma semana, mas pareceu uma eternidade. Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido".
Foi durante o cativeiro que ele viu as fotos inéditas do nosso planeta, tiradas do espaço e publicadas pela revista Manchete, que o inspiraram para compor Terra dez anos mais tarde.
E a lembrança das risadas da irmã mais nova lhe serviam de consolo, daí ter composto lá mesmo a pungente Irene.
E a lembrança das risadas da irmã mais nova lhe serviam de consolo, daí ter composto lá mesmo a pungente Irene.
"Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui/ Eu não tenho
nada, nada, quero ver Irene rir/ Quero ver Irene dar sua risada"
.
Quatro meses depois foi a minha vez de passar por aquele quartel, talvez até na mesma solitária (eram três).
Afora comer no chão mesmo e sem talheres, havia também o buraco no solo como latrina, a falta de torneira ou chuveiro, o espaço ínfimo, o frio que fazia à noite (deixaram-me só com a cueca e sem coberta nenhuma), de forma que, mesmo sentando no chão e abraçando as pernas na tentativa de me esquentar, mal conseguia pregar o olho.
Irritava-me muito a jactância de um sargento, que fazia questão de repetir a toda hora que Caetano e Gil haviam chorado quando tiveram suas jubas raspadas a zero, ao passo que os militantes pelo menos mantinham uma compostura básica, na avaliação machista dele.
"Quando eu me encontrava preso na cela de uma cadeia/ Foi que eu vi pela
primeira vez as tais fotografias/ Em que apareces inteira, porém lá
não estavas nua/ E sim coberta de nuvens/ Terra/ Terra"
.
Não era esse o tipo de reconhecimento que eu queria do inimigo. E percebia muito bem que aquilo era demais para um civil, mesmo não tendo ele de passar pelas sessões de tortura a que nós éramos submetidos.
Foi lá que o cabo Marco Antônio Povoreli, um brutamontes que pesava 140 quilos, por pura maldade, estourou meu tímpano com um tapa no ouvido direito dado com a mão espalmada, quando me reconduzia à solitária após haver sido torturado com choques elétricos. (por Celso Lungaretti)
6 comentários:
Sinto muito pelo seu sofrimento (e, claro, de todos os combatentes).
A propósito, cheguei a ler um relato de um companheiro em que ouviu o seguinte de seus verdugos:
"Aqui não tem Deus, nem pátria, nem família. Somos só nós e você".
Procede isso?
Ora, em cada lugar, em cada situação, dizia-se algo.
Uma que eu escutei e hoje circula por aí é a "aqui não morre quem quer, morre quem nós queremos".
E um companheiro uma vez se saiu com esta, dirigindo-se ao capitão que aparentemente dirigia o DOI-Codi/RJ: "Você pode me estourar, mas eu vou viver mais do que você!".
O oficial, com um olhar assassino, rugiu: "Por quê?". Pensou que fosse uma ameaça.
Ele respondeu apenas isto: "Porque eu sou novo e você é velho".
Para surpresa de todos os que estávamos lá, presos e torturadores, o capitão ficou desconcertado, pensou um pouco na resposta, fez um sinal de pouco caso e foi embora.
Enfim, acontecia de tudo. E torturadores também teatralizavam um pouco a coisa, mostrando-nos bandeiras do Esquadrão da Morte, forçando-nos a roletas russas que não enganavam a nenhum de nós, etc.
Celso, eu só queria que você encontrasse esse filho da puta hoje. Sem estar preso. Eu queria que você tivesse uma conversa com esse arrombado e cobrasse seu tímpano.
Esse tipo é covarde e iria se cagar todo...
Mas é só imaginação minha. Mas que eu queria.... Isso sim
Esse tipo de covarde dos infernos. Tomara que já tenha morrido.
Você seguiu muito bem. Sei que há o trauma
Vai fica. Mas eu odeio covardia. Desculpa o desabafo
Companheiro,
seria parada indigesta. O cabo Povoreli pediu baixa juntamente com o capitão Guimarães e o acompanhou como guarda-costas.
O capitão Guimarães se tornou bicheiro, bingueiro e é um dos pais das milícias do RJ. Se o Povoreli ainda estiver vivo, eu precisaria ir acompanhado de uma tropa, e não tenho como consegui-la atualmente.
Eu até que acalentava esses desejos de vingança, principalmente do cabo Anselmo, para vingar dois grandes companheiros: o Moisés e a Lucy. Mas ele também tinha quem o protegesse (gente que era ou tinha sido do Dops paulista).
Quando, aos 50 anos, decidi que, de um jeito ou de outro, realizaria o velho sonho de ser pai biológico, desisti de acertar contas do passado. Não se bota criança no mundo para deixá-la órfã.
Hoje minhas filhas têm 18 e 12 anos. Com um pouco de sorte conseguirei estar apoiando-as até que alcancem uma situação mais definida na vida. E tenho muita curiosidade em saber como serão meus netos...
Um abração, companheiro!
Eu entendo. Cuida das suas meninas. Tenho certeza que elas vão contribuir muito com o mundo como seres humanos.
Foi só uma opinião de tempos de pandemia KKK.
Sou do Rio. Sei como são as coisas.
De toda forma, obrigado pelo site e pelas idéias.
Esqueci: um forte abraço também. E os agradecimentos pelas idéias são muito sinceros.
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