quinta-feira, 23 de julho de 2020

BOLSONARO É GENOCIDA? ELE COMETEU CRIMES CONTRA A HUMANIDADE? SÃO 2 PERGUNTAS QUE NÃO QUEREM CALAR!

Não dá para ignorarmos: o presidente da República Jair Bolsonaro pode mesmo ser culpado de genocídio e tal possibilidade tem mesmo de ser levada em conta por nosso Legislativo e investigada pelo Judiciário brasileiro, como também pelo Tribunal Penal Internacional.

Daí a relevância da entrevista concedida a Eliane Brum, do El Pais, pela jurista Deisy Ventura, coordenadora do doutorado em saúde global e sustentabilidade da USP, que havia aprofundado exatamente tais aspectos num livro sobre uma pandemia anterior, a da gripe a-H1N1.

Recomendamos aos leitores que acessem a íntegra da entrevista aqui. E, como ela é demasiadamente extensa para os padrões deste blog, publicamos abaixo uma condensação das principais respostas dadas por Deisy Ventura. (o editor)
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"TRATA-SE DE UMA POLÍTICA DE EXTERMÍNIO"  
Deisy Ventura: "extermínio intencional"
Existe uma banalização da palavra genocídio, mas não é o caso agora. O ministro Gilmar Mendes disse que o Exército estava se associando a um genocídio, referindo-se à resposta brasileira à pandemia. Naquele momento, o número de mortes já estava em 70 mil pessoas. 

É muito importante que um membro do Supremo Tribunal Federal, que é conhecido como alguém politicamente conservador, utilize essa palavra, porque ele certamente não usou essa palavra por acaso. É alguém que conhece o conceito de genocídio, conhece o direito e não é novato nem no mundo jurídico nem no mundo político. 

É importante não só por ser ministro, mas também pela percepção internacional dessa fala. A diplomacia brasileira teria recebido desde o ano passado uma orientação clara para frear o uso deste termo. Existe um alerta para não deixar que se difunda no Exterior a ideia de que está ocorrendo um genocídio no Brasil. 

Assim, cada vez que a palavra é pronunciada em relação ao Brasil, a diplomacia reage. Infelizmente, em geral desqualificando quem fez a declaração e caracterizando-a como banalização. Até então o genocídio era associado à população indígena e não relacionado à pandemia. Agora, com a fala do ministro, chegamos a outro patamar e precisamos discutir com muita serenidade essa questão.

Não podemos falar sobre genocídio de uma forma polarizada e vulgar. É chegado o momento de falar do genocídio fora da clivagem da banalização. Não é apenas um grito dos mais fracos para chamar a atenção.  
Estamos agora diante de indícios muito significativos de que existe um genocídio em curso no Brasil:
— no que se refere à população em geral, acredito que há o crime de extermínio, artigo 7º, letra b, do Estatuto de Roma
— é também um crime contra a humanidade; e,
 no caso específico dos povos indígenas, minha opinião é de que pode ser tipificado como genocídio, o mais grave entre os crimes contra a humanidade. 

O crime de extermínio é a sujeição intencional a condições de vida que podem causar a destruição de uma parte da população. O que chama a atenção, neste caso, é que o exemplo usado no texto do Estatuto de Roma é justamente o da privação ao acesso a alimentos e ao acesso a medicamentos. 

Desde o início da pandemia, o governo federal assumiu o comportamento que tem até hoje: de um lado o negacionismo em relação à doença e, de outro, uma ação objetiva contra os governos locais que tentam (...) controlar a propagação e o avanço da covid-19. 

E desde o início tenho dito que se trata de uma política de extermínio. Por quê? Porque os estudos têm nos mostrado que as populações mais atingidas são as populações negras, são as populações mais pobres, são os mais vulneráveis, entre eles também os idosos e os que têm comorbidades.

E, infelizmente, o que prevíamos aconteceu. Apesar da subnotificação (todos estão de acordo que há mais casos no Brasil do que são reconhecidos), ainda assim há um volume impressionante e existe um perfil claríssimo das pessoas que são mais atingidos pela doença. 

Tanto no genocídio da população indígena quanto no que, na minha opinião, é uma política de extermínio com relação à resposta geral da pandemia, eu vejo uma clara intencionalidade. Faz parte da definição dos crimes contra a humanidade a existência de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil. Estes dois elementos são muito importantes. 

Algumas pessoas dizem que o Tribunal Penal Internacional seria para conflitos armados. Isso também não é verdade. O estatuto é claríssimo. Não é preciso haver uma guerra ou conflito armado para que se pratique um crime contra a humanidade. 

E, mais do que isso, até a tentativa de genocídio é punível pelo estatuto. Sequer é necessário que ele tenha sido consumado. Da mesma forma, se pune também a incitação ao genocídio. A incitação é punida, a tentativa é punida. 

Precisamos analisar com muita serenidade o que tem acontecido no Brasil. Afirmo que nem de longe se trata de uma política fracassada de resposta à Covid-19. Nem de longe. 

O governo age de uma maneira claríssima em combate à saúde pública. Ele não só dissemina falsas informações sobre a doença e, portanto, age no plano da comunicação para disseminar o negacionismo, como ele também construiu um conjunto de ações, inclusive por via legislativa, para obstaculizar as medidas de combate e prevenção à Covid-19 de iniciativa de outros poderes. 

Vejo aqui todos os elementos configurados: ataques sistemáticos e a intenção de sujeitar uma parte importante da população brasileira a condições de vida que podem implicar a sua destruição.

É evidente que o Tribunal Penal Internacional nunca foi confrontado a uma situação como a que estamos vivendo no Brasil. Então é natural que alguns juristas, por maior que seja a sua experiência e o seu valor, digam que nunca cuidaram de uma questão como esta. 

Nunca vivemos uma pandemia com esse alcance na contemporaneidade, com a existência de um sistema de saúde pública universal, na qual temos os meios para uma resposta eficiente, e o governo federal optou por não oferecer essa resposta. 

Muitas pessoas são grandes estudiosas do direito penal internacional, mas talvez não tenham estudado de forma mais detida o que o governo brasileiro tem feito com relação à Covid-19. O presidente da República é um agitador de extrema-direita e o movimento que o levou ao poder busca de forma ostensiva aparelhar o Estado brasileiro. 

Órgãos do Estado (como a própria Secom, segundo o Poder Judiciário), tentaram veicular campanhas que insuflam a população contra as autoridades. O presidente da República chegou a sugerir a invasão de hospitais para que seus seguidores os fotografassem, para assim comprovar a tese complotista de que a Covid-19 não seria tão grave nem teria se propagado nessa dimensão. 

Nós temos configurada aqui muito mais do que uma omissão. Nós temos uma ação intencional clara e também um caráter sistemático. 
Além desse circo de mentiras e distorções, precisamos também ir lá olhar o Diário Oficial, para entender o que acontece atrás da cortina de fumaça. Quando a gente vai lá ver, vai somando evidências claríssimas dessa intencionalidade. 

Não são apenas as falas do presidente, mas uma sucessão de atos que demonstram uma intenção clara e um ataque sistemático às tentativas de controle da propagação da doença. Por isso, em minha opinião, existe uma política de extermínio em curso.

[Inspira-se num] plano [que] é muito claro para quem acompanha e pesquisa diariamente o que está acontecendo com a Covid-19. Aquilo que o presidente da República chamou de guerra e de jogar pesado contra os governadores constitui claramente um plano para obstruir uma resposta eficiente dos Estados à pandemia, com etapas como:
— o pedido a empresários para que deixassem de financiar campanhas eleitorais de governadores não alinhados;
  ameaças constantes em declarações públicas; e
 incitação à desobediência civil, entre muitas outras medidas legislativas ou administrativas. 

O presidente chegou a demitir dois ministros da Saúde que não concordavam com seus planos para a pandemia.

Seria muito ruim se, ao final desse acontecimento terrível, a versão sobre o que aconteceu fosse a de que esse governo foi simplesmente incompetente... 

Nada disso me parece uma questão sobre políticas públicas, mas sim uma questão sobre responsabilização individual. Precisamos responsabilizar criminalmente as pessoas que estão promovendo genocídio ou outros crimes contra a humanidade, como o de extermínio.

Mesmo naquela famosa declaração de 24 de março, em que o presidente usa a expressão gripezinha para se referir à Covid-19, há muito mais do ponto de vista jurídico. No mesmo pronunciamento o presidente critica, p. ex., o fechamento das escolas. (...) Imagine, numa corte internacional, um juiz que se defronta com uma fala de um presidente da República que, em plena pandemia, se pronuncia contra o fechamento das escolas...

Há muitos [outros exemplos]:
  o presidente vetou a obrigação dos estabelecimentos comerciais de informar em cartazes a forma correta de usar as máscaras e vetou a obrigação dos estabelecimentos comerciais de afixar o número máximo de pessoas que deveriam estar lá dentro;
 veta a obrigação do uso da máscara no sistema carcerário, veta nos estabelecimentos de ensino e veta nos templos; 
  [atrasa a] sanção da norma que liberava recursos financeiros para os Estados. (...) Muitos Estados estavam já sem recursos para comprar insumos, como respiradores e até sedativos. Os Estados então pedem essa ajuda, o Congresso aprova a ajuda e o presidente retarda ao máximo a sanção à lei; 
 quando o governador do Maranhão, Flávio Dino, [com muitos esforços]  organiza uma compra, é ameaçado e a Receita Federal declara que haveria processo contra ele e todas as pessoas envolvidas;
  [fazem-se] ameaças de operações policiais contra os governadores, na tentativa de caracterizar a resposta à pandemia, a compra de insumos, como corrupção, como se gastos com hospitais de campanha e respiradores fossem necessariamente uma forma de enriquecimento ilícito;
 há a substituição de quadros experientes do Ministério da Saúde, com grande conhecimento sobre a resposta a doenças infectocontagiosas, por pessoas sem nenhuma experiência; 
 [há a] tentativa de manipulação de dados da covid-19; e
 há, ainda, o uso de cloroquina, inclusive em comunidades indígenas. 

No começo a própria OMS estava investigando a eficácia ou não. Mas, hoje, não há a menor dúvida. Além de tudo o que significa o uso da cloroquina, ainda se configura a intenção de iludir as pessoas de que existe uma forma de tratar a doença. 

Genocídio não é só colocar pessoas num paredão (ou numa câmara de gás) e fuzilar as pessoas. O genocídio se dá também ao suprimir as condições necessárias à vida e às condições à saúde. (...) Há algo novo que os sistemas internacionais vão ter que levar em conta. 

O fato de não haver um precedente significa apenas que, na contemporaneidade, a humanidade não tinha chegado a essa fase da História. 

Com toda a tecnologia e ciência, é a primeira vez que nos confrontamos com um fenômeno dessa magnitude. A grande maioria dos Estados fez o máximo possível com as condições que tinha para enfrentar essa situação. Não foi esta a decisão do Estado brasileiro.

O Tribunal Penal Internacional é uma grande conquista da humanidade também porque ele permite responsabilizar pessoas por crime contra a humanidade. Alguém chega ao poder em determinado Estado, mas há limites do que pode fazer ao exercer seu poder contra o próprio povo. 

Existem gestos que agora têm nome e são tipificados, e o mais grave deles é o genocídio. Há possibilidade de processar chefes de Estado, generais, grandes empresários, grileiros, funcionários públicos com cargos de responsabilidade, pessoas que participaram do crime.

Processos que são movidos em busca da justiça, para responsabilizar pessoas que atentam contra a vida de populações vulneráveis ou contra grupos específicos, como os indígenas, são processos que fazem emergir a verdade. O processo vai dando voz às vítimas, oportunizando que sejam escutadas nas mais diversas instâncias. A construção, organização e sistematização dessas provas vão despertando a consciência das pessoas. 

No Brasil, o mais importante é mostrar que o que está acontecendo vai muito além de um debate vulgar sobre questões da maior gravidade, vai muito além da suposta incompetência do governo federal na resposta à Covid-19. 
Um processo faz com que a verdade apareça na voz das vítimas ou de seus familiares. Vai mostrando que não é só uma forma infeliz de se manifestar, não é só ignorância, não é só incompetência. Existe uma intencionalidade. No caso de uma ação por genocídio ou por outro crime contra a humanidade, como o extermínio, o caminho é mais importante do que o destino.

Eu afirmo que é preciso investigar a acusação de genocídio com relação ao presidente do Brasil. Se queremos dar densidade técnica a esse debate, não podemos condenar antes do julgamento. Devemos denunciar e esperar a decisão... 

Mas não tenho nenhum problema em dizer que diversas autoridades brasileiras, entre elas o presidente da República, me parecem suspeitas de crimes contra a humanidade e precisam ser investigadas.

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